Júlia Aguiar
Livraria Leitura comete crime racista em João Pessoa
Racismo
Funcionários da livraria, que está localizada no shopping Mangabeira, perseguiram dois amigos negros pela loja. As vítimas entraram com processo contra a empresa

#VidasNegrasImportam - Arte: Merak. Reprodução Pinterest
Em menos de um mês mais uma grande empresa, a Livraria Leitura, localizada no shopping Mangabeira, em João Pessoa, Paraíba, cometeu crime de racismo contra um casal de amigos negros. A arqueóloga e integrante do “Bambidele”, coletivo de mulheres negras, Dindara de 25 anos e o cineasta Lucas Mendes, de 29 anos, foram alvo de racismo enquanto procuravam coisas para comprar na Livraria Leitura. O fato ocorreu nesta quarta-feira, dia 2, na hora do almoço. O Shopping Mangabeira é um dos maiores da capital paraibana com 212 lojas em 112 mil metros quadrados.
Dindara percebeu que estava sendo seguida por um funcionário da livraria quando abriu a bolsa para pegar o celular enquanto olhava canetas e outros materiais para comprar. “Quando eu percebi que o cara estava atrás de mim, eu dei uma olhada na loja e me dei conta que eu fui a sorteada do dia, o cara foi gastar todo o racismo dele em cima de mim”, conta Dindara em entrevista por telefone ao Jornal Metamorfose.
A situação se agravou após diversas atitudes racistas e de desconfiança. Dindara e Lucas se encontravam na fila para pagar as compras quando perceberam que o funcionário continuava de olho nos dois, menos no outro amigo, que é branco, claro. Dindara pediu para conversar com o coordenador da livraria para entender a política de loja em relação ao atendimento por parte dos seus funcionários.
O coordenador respondeu: “porque pessoas iguais a vocês tem esse perfil mesmo, é normal”, segundo relatos.
Além de perseguir Dindara e Lucas, o funcionário ainda tentou agredir fisicamente a arqueóloga. A agressão física só não ocorreu porque o funcionário foi impedido pelo coordenador da Livraria Leitura. “É muita frustração você estar dentro de uma livraria, no século 21, um lugar de diversidade e ainda tenha que passar por uma situação dessa”, desabafa.
A Leitura divulgou nota, pelo Instagram, na tarde de ontem, afirmando que: “O quadro de 14 funcionários da Leitura do Mangabeira shopping tem atendentes, assistentes e coordenadores, nenhum deles é fiscal de loja e tem a função de fiscalizar clientes. Não trabalhamos com perfis e não instruímos nenhum funcionário neste sentido.”
Procurados pela reportagem, a assessoria de imprensa do shopping e da livraria não deram declarações oficiais sobre o caso. Nas redes sociais a nota tem mais de 400 comentários denunciando casos de racismo em várias lojas da Leitura ao redor do país.
Após a situação, as vítimas só conseguiram registrar o boletim de ocorrência após passarem por duas delegacia de João Pessoa. Na primeira, filas imensas. Na segunda policiais despreparados. O delegado chegou, até, a pedir para que Dindara e Lucas explicassem a diferença entre racismo e homofobia. Para agravar a situação, quando conseguiram fazer o boletim de ocorrência, o policial se recusou a tipificar o fato como racismo, mas apenas como constrangimento.
“A gente sente que há uma dificuldade da própria estrutura policial em lidar com o racismo, nesse caso em particular, quando foi relatado para um agente de polícia que fez o BO qual tinha sido o acontecimento, ele falou ‘ah então foi um constrangimento legal por estar andando atrás de você, porque não dá pra demonstrar um racismo’”, explica o advogado do caso Alexander de Sales, 45 anos, em entrevista ao JM.
Segundo Dindara, eles tiveram que explicar didaticamente durante muito tempo porque o ato era um crime de racismo. E mesmo assim não conseguiram tipificar a perseguição e insinuação de roubo por parte do funcionário da Livraria como racismo no boletim de ocorrência.
Consequências
O advogado do caso, Alexander de Sales, explica que o processo irá correr no âmbito criminal contra os funcionários e civil contra a empresa. O caso pode se desenrolar em punições criminais para o vendedor e o supervisor, além de indenização paga pela livraria para as vítimas.
No entanto, Alexander acredita que “a maior punição que uma empresa pode receber é ter o nome exposto com proteção a crimes de preconceito e violência das minorias. E o impacto que uma imagem associada a crime racial pode gerar. A principal punição para empresa é ter seu nome associado ao crime”, conta em entrevista por telefone ao JM.
Dindara relata que os funcionários gargalhavam ao vê-la saindo da loja, “quero todo mundo rindo na frente do juíz”, afirmou. Depois do boletim de ocorrência, o advogado voltou a livraria com as vítimas, “ninguém se aproximou, eles ficaram olhando para as vítimas e não pra mim”, explica. Para ele, o grande problema é que os policiais não estão preparados para lidar com o racismo estrutural, tendo em vista que a própria instituição é racista. “Hoje em dia temos uma delegacia especializada contra o crime contra mulher, mas não temos uma delegacia contra crime racial”, discorre.
“A grande verdade é que esse mesmo fato acontece no dia a dia, sabemos de vários relatos de pessoas sendo perseguidas em lojas, pessoas negras, é muito comum. E não existiu até hoje uma punição exemplar, para que as empresas se sintam inibidas a cometer o crime”, afirma Alexander.
Marcas
O racismo provoca marcas na saúde mental de vítimas da violência preconceituosa. Especialistas apontam que um dos principais fatores é o fato de a vítima nem sempre perceber a relação entre o sofrimento psicológico e a discriminação.
Segundo dados do levantamento Óbitos por Suícidio entre Adolescentes e Jovens Negros, de 2018, feita pelo Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade por suicídio entre jovens negros é três vezes maior que a de jovens brancos. Entre 2012 a 2016, o índice se manteve estável entre pessoas brancas, porém com crescimento de 12% para pessoas negras.
“O racismo é tão diário que a gente se adapta. No dia 7 de novembro, dia 18 de novembro e agora em dezembro eu sofri com racismo. Fora todas as outras violências que perpassam pelo meu corpo, enquanto mulher negra”, relata Dindara.
A arqueóloga relatou que nesta quarta-feira teve crise de ansiedade, não conseguiu comer, o estômago, a cabeça e o corpo doíam. Apesar das marcas, ela conta que o pior é saber que os funcionários estão duvidando se houve ou não racismo. “Falaram que eu estava fazendo uma encenação e que agora a gente vai ter que provar o que estamos falando”, relata.
Esperança
A guerra é incessante. Entretanto, engana-se quem pensa que o povo preto anda sozinho, pois andam muito bem acompanhados. Dindara é candomblecista, e conta que saiu da loja sabendo que tinha consigo as forças de seus ancestrais.
“O meu axé, minha cura, minha ancestralidade estão em dia, Exu está comigo. A minha ancestralidade me dá muita força. Se eles querem falar que eles não são racistas e eu to falando que são, então a gente vai ver como que vai ser”, conta com voz animada, a arqueóloga ao JM.
PROTESTO
Hoje, dia 5, às 17:30, será realizada uma manifestação em frente ao shopping Mangabeira, em João Pessoa, Paraíba, em protesto aos atos de racismo cometidos na Livraria Leitura e para alertar que atitudes como a do funcionário da loja é sim crime de racismo.