Dayla Dias Gomes
Malditos milicos
Gotas de acidez
Em sua estreia como colunista do JM, Dayla Dias Gomes discorre sobre o autoritarismo colonial das forças armadas brasileiras

Polícia Militar agride manifestantes por toar fogo em boneco durante manifestação em Goiânia. 2020. Foto: Lucas Wagner Nunes
Como povo brasileiro, vivemos constantemente em um não-lugar e estamos nesse limbo existencial por conta de uma estrutura social construída por colonizadores através de seus braços fardados, as forças armadas.
A escravização nas Américas, ou seja: o sequestro, a privação de liberdade e a realização de trabalhos forçados, de pessoas vindas do Continente Africano foi baseado em racismo. Vindas principalmente de Angola e Congo e trazidas especialmente para o Brasil, essas pessoas eram usadas como mão de obra barata por aqueles que tinham dinheiro e, por consequência, poder.
Esse processo de escravidão não era como na antiguidade onde as pessoas eram escravizadas por dívidas ou espólio de guerra no continente europeu e que se livres das correntes poderiam facilmente passarem despercebidas.
Aqui toda pessoa preta era escravizada até que se provasse o contrário e, mesmo provando, corria o risco de ser presa e ter seu corpo transformado em mercadoria por brancos. Assim era a lei, e quem fazia-se cumprir a lei era o estado através de suas instituições que detinham e detêm o monopólio da violência. O estado na figura da polícia e das forças armadas representa a manutenção do poder nas mãos de quem detém dinheiro. Não é atoa que os maiores latifúndios ainda estão nas mãos de herdeiros de capitanias hereditárias.
Quando algo incomoda quem está deixando de lucrar, os cães de guarda da burguesia entram em ação com algum golpe, e foi através do golpe que essa república se fez.
O patriotismo é o último refúgio dos covardes e as forças armadas brasileiras entendem muito bem de covardia, porque é o modo de viver das elites a quem o exército se ajoelha. Desde sua origem essas demonstraram bem como a mão do estado é pesada e como sua lealdade sempre foi ao dinheiro e não ao regime opressor do qual elas fazem parte. Entendam que para as forças armadas opressão é motivo de prazer pois o sabor do sangue da carne mais barata do mercado é uma iguaria e o melhor guardanapo são as notas de dólar americano. Deslealdade ao povo que eles dizem proteger e defender é o modus operandi, assim como a tortura desse mesmo povo.
Quando ainda esse território era colônia as forças armadas foram essenciais para a manutenção da escravidão dissolvendo assim por meio de massacre toda e qualquer revolta popular contra a opressão do poder vigente. E as forças armadas seguem fazendo desta última diretriz a sua principal política até os dias de hoje.
Lógico que tentar plantar bombas em multidões e se explodir, fuzilar carro de trabalhador com mais de duzentos tiros, traficar oitenta e nove quilos de cocaína no avião da comitiva presidencial, ocultar cadáver, torturar, beber Heineken e picanha superfaturada e pintar meio fio não são as únicas atividades do exército. Para eles, não basta apenas estar ao lado de quem tem o poder, é necessário tomar o poder. A história deste país é feita de golpes e ditaduras militares que o Brasil já viveu e que está vivendo.
Os europeus brancos, para manterem sua dominação sobre os corpos e mentes de pessoas escravizadas, demonizavam e ainda demonizam toda a cultura vinda de outros lugares (isso quando não acham outra forma de se apropriar dessas para terem algum lucro ou colocam essas culturas no patamar de exótico). Parte de destruir a capacidade de alguém se revoltar é fazer com que tudo que a pessoa conhece e até a si mesma e seus semelhantes se tornem motivo de vergonha, nojo, repulsa, desumanização e por fim de demonização. O que construiu a estrutura do racismo até hoje é essa exaltação de tudo o que é europeu e branco pela indústria cultural.
A origem do povo brasileiro se deu através do estupro de mulheres pretas e indígenas por homens brancos. Aprendemos a odiar tudo vindo do Brasil, mas brasileiros de alguma forma se sentem superiores aos nossos vizinhos da parte sul do continente que fazemos parte, por falarmos outra língua, por acharmos ser um por cento mais qualquer coisa que não somos do que eles.

Protesto contra o genocídio do povo preto, Rio de Janeiro, 22.11.2020. Foto: J.Lee Aguiar
Quantas séries de televisão e filmes retratam a Europa no período medieval de forma lúdica com seus belos vestidos, palácios e joias? Agora pense outra vez em quantas séries e filmes sobre povos e reinos africanos são um sucesso estrondoso? Quantas séries sobre povos originários do que hoje entendemos como Continente Americano, sobre os vários povos de toda a Ásia, sobre as diversas sociedades das ilhas polinésias, sobre os povos vindos da Oceania? Por que razão aprendemos na escola sobre a guerra de cem anos que ocorreu entre França e Inglaterra e nunca ouvimos nada sobre os vários povos de várias nações indígenas, suas diversas línguas e tradições?
Não somos brancos o suficiente para sermos europeus, não somos pretos o suficiente para sermos africanos. E era isso que os colonizadores queriam ao estuprar mulheres escravizadas, mestiços que se achassem superiores a suas mães, irmãos e irmãs a ponto de puni-los por não serem o suficiente para viverem na casa grande com seus pais. O auto ódio é a única política institucionalizada do Brasil a longo prazo e é essa política que leva ao desmonte de tudo o que se tenta construir aqui.
A política da mão armada do estado é essa, as forças armadas têm em seus primeiros escalões apenas homens brancos endinheirados que na sua sede de mais poder e dinheiro vendem tudo o que podem do país. Ao longo de toda a sua história, apenas onze pessoas negras ocuparam o posto de general. O que não é o caso das patentes intermediárias em que quanto mais baixa a patente mais pessoas pretas as ocupam. Isso não é coincidência.
A violência não pode ser monopólio dos opressores, pois essa delimitação arbitrária é uma sentença de morte. E essa fórmula de genocídio é extremamente lucrativa ao capitalismo, caso contrário, não morreriam tantas pessoas.
Logicamente com o Covid-19 esse processo foi acirrado, juntou-se a sede de sangue com a sede de dinheiro e poder. A atual ditadura militar que vivemos fez bilionários mais ricos e os comandantes das forças armadas também. Para eles, se manter no poder é uma questão não apenas de enriquecimento, mas também uma forma de saírem impunes mais uma vez, mesmo com as mãos sujas de sangue. Os comandantes atuais são crias diretas da ditadura e estão colocando em prática tudo o que aprenderam com seus mentores.
O que nós faremos? Seguir confiando no caminho institucionalizado da conciliação de classes, que será implodido assim que os opressores deixarem de lucrar alguns centavos a mais? Colocar nossa fé no que parece ser o menos pior me parece uma das piores armadilhas que existem, pois afinal, até quando viveremos de migalhas?
Encaremos a realidade, quarentena com milhões fora da linha da miséria é algo muito grande para um país que nunca teve políticas de redistribuição de renda.
Pensemos a longo prazo. Quantas pessoas teriam suas vidas melhoradas com uma reforma agrária que faria terras improdutivas nas mãos de latifundiários que vivem de exportar soja, sendo usada de forma consciente de modo a plantar uma variedade muito maior de alimentos?
Reflitamos sobre quantas pessoas poderiam ser atendidas de forma melhor no SUS se a legalização do plantio e venda de cannabis para uso medicinal e recreativo parte desse lucro fosse usado para um investimento nesse sistema. Acabar com a "guerra às drogas", que na verdade é a guerra contra pretos, pobres e pessoas periféricas, colocando fim ao genocídio dessa população e o seu encarceramento em massa.
Redistribuição de concessões de televisão e rádio de modo a democratizar a mídia que poderia ser feita de forma comunitária. Revolucionar o sistema de ensino público, não para gerar apenas mão de obra barata, mas para gerar pessoas com capacidade de interpretar e analisar sua realidade. A demarcação de terras indígenas para proteger essas pessoas tão ameaçadas desde sempre pelo ódio colonizador e pelo desejo cego de dinheiro de grileiros, madeireiros e garimpeiros que roubam, destroem nosso rico ecossistema e ainda por cima envenenam pessoas com mercúrio e outros metais pesados.
Campanhas governamentais de larga escala pela defesa a direitos humanos e de pessoas oprimidas de alguma forma, seja por cor de pele, gênero ou sexualidade, bem como um projeto massivo em lei de contratação de pessoas trans pelas empresas.
Marcha da resistência indígena. 2018, Goiânia. Foto: J.Lee

Pois bem, parte dessa "esquerda" esteve no poder e esteve mais preocupada em uma conciliação com bancos, aviões para as forças armadas e para o povo, migalhas de dignidade. Bem poucas, mas o suficiente para incomodar quem odiava ver pobre ser feliz. Parte dessas pessoas que sempre odiaram pobres deixaram de comer picanha para comer lagosta, hoje, parte deixou de comer picanha para comer salsicha.
Esse plano de poder foi o fertilizante para a semente do golpe, onde hoje nasce a árvore da ditadura. Um caos social completo tão grande e deplorável que nós com mais de meio milhão de mortos estamos pensando na eleição do ano que vem como se ela fosse resolver nossos problemas. Nossa situação nunca esteve tão assustadora e quando grupos decidem fazer ação direta, são entregues à polícia por aqueles que tomam para si o título de vozes da esquerda, chamando-os, esses grupos combativos de infiltrados.
Quando acordaremos? Até quando ficaremos nesse limbo existencial? Como faremos? Sentados num trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar? Algumas pessoas não têm o luxo de viver de olhos fechados, pois são diretamente massacradas por essa estrutura social. Essas pessoas que não podem fechar os olhos são as que fazem as revoluções acontecerem. Lutam não para ganhar algo, mas para não perder as suas vidas e as de quem amam. E é por isso que pessoas assim são mais fortes que qualquer militar, eles sabem disso e por isso nos temem.
Enquanto não decidirmos por nós alguém irá decidir e isso é tudo o que os cães de guarda da burguesia querem. A resposta está em aprender a usar a arma do opressor, a violência, para proteger pessoas oprimidas. Essa também está em não ter medo de sonhar e ao mesmo tempo ter coragem de agir para construir esse sonho.
Ainda há um longo caminho pela frente, mas não deixemos que a desesperança tome conta de nossas vidas. Pois é isso que os militares querem, um povo sem esperança, pois a esperança no futuro junto com o ódio a injustiça do passado e do presente é o combustível da revolução. Queimemos então os algozes da liberdade, os golpistas, reacionários e inimigos do povo que se escondem atrás de fardas.