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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

Mamãe, não chore

Botequim Literário

Torquato Neto: anjo torto homenageou sua mãe em música


“Mamãe, mamãe, não chore, a vida é isso mesmo, eu vou embora”.

Ou, como diz Clarice (Clarisse Abujamra) a Rosa (Maria Ribeiro) no filme “Como Nossos Pais”, dirigido pela cineasta Laís Bodanzky, a gente vai indo embora desde que saímos da tranquilidade do ventre. Vocês, eu sei que isso é péssimo, que se virem. Em geral, se viram - mas a saudade permanece.

Voltando ao tropicalista: a canção de Torquato Neto reverbera naquele alto-falante sem fio que o doutor Sigmund Freud inventou. Mamãe, mamãe, não chores, todo jornalista é meio cigano e perambula por este mundo louco e desvairado à procura de melhores histórias; às vezes cometemos insanidades, erramos, trocamos os pés pelas mãos, é verdade. Mas, ora bolas, quem não troca?

Mamãe, mamãe, lembro-me como se fosse hoje quando te disse que meu destino seriam as redações e as aventuras gutemberguianas, e eis que me tornei um escriba, daqueles responsáveis por colocar ponto e vírgula na história da civilização. Os livros de poesia que tu passaste às minhas mãos deliciaram meus olhos, alimentaram minha imaginação e fazem parte de minha biblioteca. Lembra que devorei o romance “Feliz Ano Velho”, do escritor Marcelo Rubens Paiva?

Na arte da culinária, aquele arroz com feijão e bife quando eu chegava da escola, que cerimônia!, não tem preço. O macarrão com carne moída, que mandava ver com a degustação de quem prova uma iguaria típica da culinária italiana, após a última aula de Educação Física, sempre comi exageradamente (risos), ficará em minha cachola para o resto da vida.

Isso sem contar as inúmeras vezes que foste ao médico comigo nas madrugadas: você me acalmava quando eu achava que o mundo inteiro ia desabar sobre meu corpo fragilidade por uma peste.

Vixe, mamãe, sem falar nos cafunés, no dengo, nos conselhos sobre mulheres, no auge da dor provocada pela pé na bunda, já na fase adulta, que foram aliviados por doses de cachaça e cerveja. A vida adulta é incompreensível, se aos 25 penso assim, imagine tu aos 48? Sem falar, claro, do Taiguara, no Gil, no Caetano - e todos aqueles sobre quem conversamos por horas a fio.

Mamãe, mamãe, não choras, tu ainda verás meu nome em livros e jornais. Temos muito o que reclamar da vida, mas nada além das queixas habituais sobre o cotidiano. Mamãe, mamãe, este final de semana é teu, curta-o e viva-o da forma que achares melhor.

Desculpe-me pelo meu mau-humor, amar é deixar o outro em sintonia com suas piadas mais sem graças, triste e envelhecidas, além de aturar grilos, medos e delírios da figura que irá acompanhar todos os teus dias. Quem foi que disse que relacionamento mãe e filho é fácil?

Batuquei esta crônica enquanto tu dormias e eu acabara de chegar do boteco com lirismo à ponta dos dedos, digo, sentia a necessidade de botar à ponta da sinfonia do teclado palavras de amor. Fui sempre chegado nessa coisa balzaquiana (e ecológica) de reciclar textos. Perdoe-me por me traíres - devo mais uma ao Nelson Rodrigues, risos.

Meu coração, para lembrar do velho Belchior, é como um beijo de novela. Só o afeto e o cuidado com as pessoas queridas nos salvará dos capítulos catastróficos desse folhetim da morte a que estamos extasiadamente assistindo.

Abraço fraternal, mamãe. Beijos do seu filho cronista que gostaria de lhe entregar estas palavras, porém a solidão pandêmica impede o afeto. É preciso, antes de mais nada, sobreviver. E no Brasil que derrete no caldo do fascismo, isso não é das coisas mais fáceis.


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