Dayla Dias Gomes
Meu sonho é ser gente
Gotas de Acidez

Comida é o que nos mantém vivendo. Como animais, dependemos de vários tipos de alimentos que nos fornecem energia para todos os processos bioquímicos dos nossos corpos. Isso é algo que nos aproxima dos outros animais do planeta, todavia, o que nos difere? Inteligência? Isso não nos torna diferente de leões, orcas e chimpanzés, que são absurdamente inteligentes, muitas vezes a ponto de criarem estratégias de caça e socialização muito mais sofisticadas do que podemos imaginar.
Autoconsciência então? Tão pouco. Golfinhos e elefantes se reconhecem como indivíduos olhando em um espelho tão bem quanto um ser humano que entende o que é o “eu”. Linguagem? Baleias jubarte cantam vários tipos de canções que podem ser ouvidas em várias frequências sonoras com grandes e pequenos comprimentos de ondas que podem ter os mais diversos significados para elas. Se considerarmos essas longas canções e outros sons emitidos de forma padronizada podemos sim dizer que elas têm uma linguagem, assim como baleias de outras espécies e quaisquer outros cetáceos.
O uso de ferramentas? Macacos pregos também as fazem e usam para abrir cocos e comer o seu interior, eu vi isso com meus próprios olhos no campus samambaia da UFG. Se não é a inteligência, autoconsciência, linguagem e muito menos fazer ferramentas, o que de fato nos difere? Pois bem, o que nos difere de todos os outros animais do planeta são o encéfalo muito mais desenvolvido proporcionalmente, capacidade de abstração que nos permite fazer correlações de imagens, sons e discursos, o que permite, através desses padrões que interpretamos na natureza, o surgimento da cultura através da reprodução desses citados anteriormente pelos signos de geração em geração de seres humanos.
*Signo consiste em tudo aquilo que possui um significado para alguma pessoa; o estudo dos signos é chamado de semiótica.
Todavia existe uma última característica de extrema importância que nos levou a surgir como espécie, uma coisa que somente seres humanos têm e fazem, a capacidade e o hábito de cozinhar.
Não dá pra falar sobre a história da humanidade sem falar da história da culinária. Sem a domesticação do trigo e da cevada para se fazer pão e cerveja, não teríamos deixado de ser caçadores coletores das planícies da África e do Oriente Médio sem a capacidade de cozinhar e, possivelmente, não teríamos a revolução agrícola que deu origem aos grandes impérios e ao aprimoramento da matemática, o surgimento da escrita e o aperfeiçoamento do que hoje entendemos como astronomia.
Com o passar dos milênios tínhamos dominado a arte da fermentação, passamos a fazer bebidas alcoólicas de várias frutas como pêssegos, uvas e romãs, o vinho em especial uma bebida rica e diversa em sabores, cores, acidez, doçura… As variedades de cerveja cresceram de forma tão espetacular que é possível que existam mais tipos de cerveja do que se tenham tons de azul catalogados por seres humanos.
Houve também a experimentação de ingredientes simples para se criar receitas novas. Imagine como seria você no começo de algum século já distante misturar farinha de trigo, ovos e leite e criar os primeiros bolos num tempo onde só existiam pães?
Porém, não dá para falar da história da culinária sem falar na história da fome, pois parte da variedade de receitas que existem hoje derivam de tempos de fome. Na idade média era comum que os pães que camponeses comiam tivessem na sua composição argila e pedaços de casca de árvore. As pessoas precisavam viver, e comer nem sempre foi ou é relacionado ao prazer. Em muitos lugares, principalmente quando se é pobre, não é e nem nunca foi sobre isso.

Às vezes era e ainda é mais saudável tomar uma bebida alcoólica em vários momentos e lugares do que beber a água, que muitas vezes trazia cólera e outras doenças por falta de saneamento.
A verdade é que nem todas as receitas para enganar a fome eram de fato ruins, as que eram boas foram se popularizando e com o tempo passaram a ganhar um status de nobreza. Os ricos sempre se apoderaram de todo o prazer que os pobres tinham e têm. A alta gastronomia surgiu nos grandes castelos da Europa e se vende como a expressão máxima do que é o sabor e requinte. Ditou e ainda dita o que é ou não bom. Já se perguntaram por que um prato francês feito de lesmas que custa tão caro é exaltado como algo refinado enquanto pessoas do Continente Asiático são tratadas como loucas por comerem espetinho de escorpião? Se não está óbvio, a explicação é racismo e colonização.
Existem dois tipos de comida, a boa e a ruim, é verdade. A comida boa é feita com cuidado e responsabilidade, muito diferente da comida ruim, que é feita por quem não tem apego pelo sabor do que faz e pela vida humana. Quem se lembra do meme do dono do restaurante que desligava o freezer durante a noite e que levou uma brutal bronca do famoso chef de cozinha? O pior de tudo é que a comida ruim chega aos nossos pratos todos os dias e não importa como você, leitor, cozinhe bem. A comida ruim vai chegar ao seu prato cheia de veneno e agrotóxicos.
A verdade é que quem lucra com os alimentos tende a não pensar na importância dele para as pessoas, afinal só o lucro importa, não a saúde. Alimento é mais que algo que comemos, ele tem uma história que começa muitas vezes em latifúndios, onde o que é produzido por pessoas em regime de trabalho análogo a escravidão vai ao prato. E há também a agricultura familiar, responsável pela produção da maior parte dos alimentos que nutrem a população, mas é criminalizada na forma do MST. Então muitas vezes no restaurante com três estrelas Michelin que serve uma sobremesa com chocolate belga, tem em seu mesmo chocolate a história de crianças escravizadas em lavouras de cacau no Brasil ou em Angola e talvez algum outro ingrediente vindo da agricultura familiar. No prato se misturam ambos ingredientes. E isso é só sobre um par de ingredientes, o que será que existe por trás de outros?
Comer mexe com nossos sentidos, para algumas pessoas privilegiadas comer é mais que uma tarefa diária para não morrer de fome trabalhando... E é triste porque muitas pessoas não tem nem comida na mesa, nem mesa, apenas um cobertor que corre o risco de ser tomado, se essa pessoa estiver em São Paulo, pela polícia de João Dória.
Eu já senti fome, eu sei o que é passar vários dias sem comer absolutamente nada vendo a comida na sua frente. O que me impedia de comer era a falta de um papel colorido que chamamos de dinheiro. Entretanto, ao mesmo tempo sou uma pessoa privilegiada o suficiente para saber o gosto de um queijo italiano do estilo gorgonzola em um molho bechamel com alguma massa. Me pergunto, porém, que mundo é esse onde comer uma boa comida é privilégio?
Comer algo realmente bom e bem feito as vezes me causa uma sensação de arrepio na nuca, mas ainda me lembro de como é a dor de já ter sentido fome. Isso me faz pensar muito no que é desperdiçado em comida enquanto muitas pessoas vivem em insegurança alimentar. Quantas pessoas seriam alimentadas com o desperdício dos supermercados e restaurantes?
Comida deveria ser mais que subsistência, mais que status de pessoas ricas em um restaurante onde uma única refeição pode custar mais que o dobro de uma salário mínimo. Uma receita é o reflexo de nossa cultura, tudo o que somos como sociedade e tudo o que acumulamos de história e conhecimento para chegar a determinado sabor. Comida é algo que une indivíduos e povos, é um ato de carinho, afeto, criatividade e responsabilidade. Comida é esperança de um futuro para crianças e também é esperança de um dia seguinte para adultos. Comida não devia ser sobre lucro, mas sim sobre partilha e sobre amor. Dizem que amor não enche barriga, de fato no capitalismo o que enche barriga é dinheiro que nem é algo comestível. E essas pessoas que tornam essa realidade sem sentido ser factual são as mesmas que dizem que o comunismo não faz sentido.
Não me conformo em viver num mundo onde o prazer de tantos é sustentado pela labuta e a fome de muitos. Quero um mundo onde todas as pessoas tenham algo para comer e que não seja o tipo errado de comida. Um mundo onde o único animal que sabe cozinhar seja também onde se compartilhe o alimento. Mas isso só ocorrerá com o fim desse sistema deletério para com a vida de maior parte das pessoas.
Por que não é preso o ministro da economia ficando rico com a nossa pobreza deixando dinheiro em paraísos fiscais, pobreza essa que faz pessoas se amontoarem desesperadas para pegar comida na caçamba de um caminhão de lixo, mas uma pessoa roubando um supermercado é? Lembro de uma reportagem onde uma mulher que foi presa por vários dias por roubar vinte e um reais em comida para alimentar os filhos dizia: "meu sonho é ser gente".
O capitalismo é sobre gente que não precisa de tanto dinheiro acumulando-o às custas de gente que deixa de ser tratada como gente para esses ricos ficarem mais ricos. Enquanto uma mãe é presa por roubar macarrão instantâneo e refrigerante, dezoito milionários viraram bilionários no Brasil. Tem gente lucrando com a fome. Se querem saber quem são, basta abrir as listas de ricos da revista Forbes.