Júlia Aguiar
Murmurando o abismo interno
Tiradentes
Como um respiro inquieto, o longa-metragem “Mulher Oceano” resgata sensibilidade com intensa reflexão sobre a existência

"Mulher Oceano" está disponível de forma gratuita e online na 24º Mostra de Cinema de Tiradentes. Foto: Cena do filme/Divulgação
“O mundo nos precede em tanto, o mar nos precede em tudo”, há quem diga que o mar é o abismo do mistério. Entre ondas incessantes e tempestuosas se escreve uma poesia em sintonia, profundamente imersa em seus murmurinhos internos. O longa-metragem de estreia da diretora e atriz Djin Sganzerla irá lhe contar sobre imensidão dos sentimentos e seu carregar sutil como ventanias que tomam as profundezas dos rios, mares e lagos.
A vida é um incessante rio de alma. E quiçá, não há metáfora melhor que a própria imensidão da água para a existência terrestre, o mar como corpo inteiro.
Ora veja só, a mãe das águas na cultura Iorubá é também mãe de toda a humanidade. Iemanjá é mãe do mundo. Pensar em água como acolhimento, maternidade e descoberta faz muito sentido quando analisamos o mar enquanto ser vivo e pulsante. É nas águas salgadas que pedras, rochas, areia, corais, peixes, sereias, micro-organismos, e todo tipo de vida vive passivamente pelo ventre de Iemanjá. Ela cuida, da de comer, acolhe.
Iemanjá é espelho do mundo, refletindo em si as contradições de toda existência. A deusa da maternidade é também guerreira, conflituosa, intensa.
Seus mares abertos são terras desconhecidas, são como os espaços internos que descobrimos ao desbravar pelo acaso de se reparar vivo. Às vezes brinco com meus próprios sentidos ao observar o mar, assim foi com as fortes imagens de “Mulher Oceano”, de ondas raivosas e potentes com os toques impecáveis da trilha sonora de Rafael Cavalcanti. Esse é um filme que tatua a impermanência em cada detalhe de entrega aberta e visceral.
Toda emoção é água também, meu caro leitor. Em “Mulher Oceano”, as personagens transbordam em si mesmas ao ponto de visualmente se intercalarem com a divindade da água enquanto personagem. Iemanjá nutre, mas também destrói.
Acho curioso o filme começar com uma imagem em que observamos por alguns minutos a paisagem em vertical, transfigurando os sentidos para um susto de lucidez! O encontro do acaso. Em linhas tortas e braçadas deslizantes: é preciso saber navegar no balanço de Iemanjá.
Pensei muito no que Djin me disse quando a entrevistei para o Jornal Metamorfose, imergir em mulheres oceânicas é como se integrar em si mesma, com o próprio mundo em si. “É a fúria da natureza te chamando pra acordar! Acorde! Acorde! Acorde!”, disse ela na ocasião. Curioso, assistindo o filme confesso que me emocionei com todos os reflexos de si que percebia fragmentados em todos nós.
Somos todos filhos de uma terra presente e ativa que vibra e acolhe a vida. As amas japonesas, conhecidas como “mulheres do mar” são um reflexo puro da conexão humana também como uno. Religiosidades a parte, pensar “Mulher Oceano” é perceber a relação intrínseca com o tempo do renascer.
A cada onda que quebra como pensamentos em redemoinho, cada movimento eterno que impregna a maresia, as calmarias e a profundidade nos levam para o abismo de cada personagem. É belíssimo.
Existir é estar constantemente nos segundos de morte e renascer de cada agora. “Mulher Oceano” não esconde que vai te deixar com as vísceras queimadas de sal, nem finge ser aquilo que não é, apenas transita pela tela como um fluxo incessante de agoras: intenso e expansivo.
Filme assistido na Mostra de Cinema de Tiradentes