JM
O acaso da vida noturna
Botequim Literário

Arcos da Lapa, Rio de Janeiro, setembro de 2020. Foto: J.Lee
Meu lema pra cada peregrinação etílica é ter um papel, uma caneta e um fígado ao estilo Ernest Hemingway. Na falta dos dois primeiros aparatos, conto com a camaradagem da memória – que se você não for um Truman Capote pode ser traído por lampejos de esquecimento. O segundo, que é ser provido de um talento etílico, é bom não faltar em qualquer observador da vida noturna.
A verdade é que, sejamos honestos, nunca se sabe quando, nem onde, muito menos em que situação o personagem vai aparecer. Pode ser numa caminhada, meu caro Machado de Assis, pelo Morro do Desterro; pode ser enquanto anda de Bonde com a barriga roncando pelo Centro do Rio, vide os escritos de Nelson Rodrigues; pode ser num botequim, nobre Fernando Sabino, quando sai do expediente.
O desta crônica, por exemplo, estava sentada - encostada à pilastra, pra ser exato - num bar na Lapa, reduto boêmio do Rio de Janeiro – lugar em que vivera Madame Satã, personalidade retratada na fita de mesmo nome protagonizada por Lázaro Ramos e dirigida pelo cineasta Karim Aïnouz. Só que o escriba não consegue recordar-se com detalhes da solenidade boêmia, desculpa.
Feitas estas considerações, eis os fatos: eram umas nove, dez horas da noite.
Bêbado, eu estava. Quer dizer, bêbado a gente estava – este escrevinhador que vos fala, a fotógrafa Lee Aguiar e o poeta IkaRo MaxX.
Para refugiar-se da chuva, optamos por procurar abrigo numa bodega no cruzamento da Mem de Sá com a Gomes Freire, e conseguir, enfim, esconder-nos das primeiras gotas que caiam. Mas, vejam vocês, o estabelecimento com o qual acreditávamos que seríamos salvos estava empanturrado de gente – nenhuma novidade pra um sábado.
Papo vai, papo vem, uma senhora (“discípula da Dercy Gonçalves”, como ela se definia) assinalou que poderíamos nos abancar à mesa. “Já vou embora”, disse ela, pedindo mais uma cerveja. E ali, conosco, interagindo em meio a gargalhadas, ela ficou até o prenúncio da madrugada, onde foi interpelada por Lee. “A senhora votou no Bolsonaro? Pode falar!”, questionou minha amiga.
Dona Márcia, sessenta e tantos anos de puro sofrimento numa sociedade patriarcal, teceu um comentário protocolar sobre interferência dos filhos em sua vida: “Implicam se eu sair do trabalho e beber uma cerveja”. Implicam? “Implicam, sim, o cara tem 35 anos e ainda mora comigo”.
É, cara dona Márcia, olha que este subscrito é dez anos mais novo que seu primogênito e foi enxotado de casa pelos pais, digo, os velhos saíram e me deixaram sob o comando da coisa: água, luz, internet, TV a cabo, a porra toda é custeada pela fortuna que ganho no ofício gutemberguiano, risos.
Por fim, lá pelas tantas da aleatoriedade boemia tipicamente carioca, ela manda um causo. E não foi qualquer, não, tá achando o quê da Dona Márcia? “Conheci o cantor e compositor Aldir Blanc, um dos maiores letristas da Música Popular Brasileira. Me lembro que ele cantava o hino “O Bêbado E A Equilibrista” nos botequins de Vila Isabel”, detalhou. Um acaso, um acaso...