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  • Júlia Lee

O dilema da censura

Censura

A 19ª edição da Bienal do Livro do Rio de Janeiro demonstra que apesar de ter se passado 51 anos do AI-5, a censura à livros com temáticas LGBTQI+ continua vigente no Brasil

Foto tirada no último ato contra a ditadura, em São Paulo, 2019. Foto tirada por Júlia Lee

Em 1968, no auge da Ditadura Militar (1964-1985), foi se instaurado o Ato Institucional de número 5 (AI-5), que através do decreto de lei nª 1077 constituía a censura prévia à livros com temas referentes a sexualidade. Existia um departamento específico do DOPS para censurar livros. Foi o que aconteceu com a escritora Cassandra Rios, que foi a primeira a publicar um livro sobre um romance lésbico no Brasil, “A Volúpia do Pecado” em 1948.


Cassandra teve 36 livros censurados pelo regime militar, era considerada uma “escritora maldita” pelos militares, afinal, a escritora publicava livros eróticos e com temáticas homossexuais. Cassandra Rios foi tão perseguida que até hoje é difícil encontrar um dos seus 50 livros em livrarias e sebos ao redor do país, antes de morrer declarou à revista TPM que “a sociedade rotula o homossexual como cachaça de macumba, não como uísque”.


Apesar do Brasil ter passado por um período, pelo menos em termos institucionais, de redemocratização, a censura ataca novamente em pleno 2019, livros ligados a temáticas LGBTQI+ na 19ª edição da Bienal do Livro no Rio de Janeiro. O prefeito Marcelo Crivella (PRB) convocou fiscais da prefeitura para recolher o HQ “Os vingadores: A cruzada das crianças”, do escritor Allan Heinberg e Jim Cheung, que contava com uma cena de beijo gay. O caso reverberou na mídia internacional, mas o que chama atenção é a relação com a história recente de censura no país e a volta de um estado autoritário. Segundo a socióloga e cientista política Lays Bárbara Vieira Morais, não devemos entender esse fato como apenas um ato de censura ou analisar o episódio como uma preocupação de Crivella com a indicação da faixa etária na capa da HQ, ou somente uma postura homofóbica.


O episódio na Bienal deve ser visto também como uma estratégia de cunho político. “Ao que tudo indica Crivella cogita pleitear o Governo Federal em 2022, o ocorrido na Bienal foi uma mensagem direta para uma fatia específica do eleitorado. Um eleitorado Bolsonarista, mas com parcelas que se mostram insatisfeitas com algumas posturas do atual presidente. E mais, Crivella usa da mesma tática midiática tão bem usada por Bolsonaro: falem mau, mas falem de mim. O simples ato de falar sobre já deixa o nome dele em voga, é melhor do que não ser falado de forma alguma. Muito mais do que censurar, Crivella deu um recado para o eleitorado conservador e religioso”, explica a socióloga e cientista política Lays Bárbara Vieira Morais.


Já a jornalista e escritora Simone Magno, que estava presente na Bienal, analisa que é o ocorrido é preocupante pois “um evento que sempre se pautou pela pluralidade, oferecendo aos leitores todo tipo de livros, tenha que recorrer ao Supremo Tribunal Federal para garantir a democracia seja soberana. Acabou sendo um tiro no pé: a bienal ficou mais cheia do que nunca, com recorde de público; os visitantes compraram mais livros; e todos os escritores abordaram o tema nas conversas da programação. Sem contar que nem tinha mais o tal livro à venda, que não era um lançamento, então eram poucos exemplares que se esgotaram nos primeiros dias”, relata a jornalista.


Ditadura Militar

Foto tirada no último ato contra a ditadura, em São Paulo, 2019. Foto tirada por Júlia Lee


Durante os anos de chumbo que assolaram o país com a tortura, a perseguição política e a repressão às liberdades individuais e coletivas, entre 1964 a 1985, diversos livros, novelas, filmes e músicas foram constantemente censurados pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).


Segundo Nonô Noleto, jornalista e escritora goiana, o caso de censura na Bienal a deixou preocupada, pois “a censura à imprensa e à arte de uma forma geral foi uma das principais pilastras de sustentação da Ditadura Militar no Brasil”, afirma a jornalista em entrevista ao Jornal Metamorfose. Nonô Noleto escreveu o livro “Flores no Quintal - Memórias de Sonhos e de Lutas”, que narra sua história de jornalista e militante junto com seu companheiro Wilmar que era jornalista e que fora brutalmente torturado à época.


A censura, que deixa marcas até hoje na imprensa, na arte e na história, vinha sendo investigada pela Comissão Nacional da Verdade, criada no governo de Fernando Henrique Cardoso como uma forma de reparação histórica do período ditatorial. Porém, com mudanças feitas pelo então presidente Jair Bolsonaro (PSL) no dia 1 de agosto, a comissão sofre cortes e mudanças estruturais que impedem de continuar as investigações com afinco e profundidade.


O preocupante sobre a censura é a sua forma de manipulação política, sendo usada como uma ferramenta de controle social. A jornalista Nonô Noleto analisa que a censura, na Ditadura, começou na fase da preparação do Golpe Militar, que iria dar início à Ditadura.


“A adesão a determinados temas e a não publicação de outros temas já é uma censura. Sabe-se hoje, por meio de várias pesquisas e livros publicados, incluindo "Cinema e propaganda a Serviço do Golpe", da jornalista Denise Assis, que multinacionais (elas comandavam a economia brasileira à época) patrocinaram os institutos IPÊS e IBAD para executarem um planejamento estratégico visando um golpe na democracia brasileira e a implantação posterior de uma Ditadura. Esses institutos produziram filmetos exaltando as qualidades das forças armadas brasileiras e denegrindo as organizações sociais e populares como sindicatos de trabalhadores, partidos políticos de esquerda e o próprio governo trabalhista de João Goulart, tido por eles como "comunista", numa análise totalmente incorreta mas que lhes era conveniente. Os filmetos eram apresentados em todas as salas de cinema do Brasil, antes do início da película, ou era levados às peças dos bairros e pequenas cidades onde não existiam salas de cinema”, explica a jornalista e escritora Nonô Noleto, em entrevista ao Jornal Metamorfose.


Nonô relata que assim se moldou o imaginário popular e a opinião pública para aceitar o Golpe Militar e depois a Ditadura. Logo depois do golpe os institutos IPÊS e IBAD foram extintos pois o trabalho de manipular a imagem do golpe já estava feita, e agora bastava controlar a opinião pública, via censura. O que soa muito atual, por incrível que pareça.


“Mais que nunca precisamos falar sobre esse tempo que o povo brasileiro viveu mas não conheceu, porque a imprensa era censurada. E precisamos falar ainda mais porque hoje a história está se repetindo. Assistimos como um espetáculo televisionado um novo golpe à democracia. Não militar, desta vez, mas com a participação ainda mais forte da imprensa e com maior sofisticação e poder de convencimento, pelo uso da Internet e das chamadas fake-news - notícias falsas. E vivemos, hoje, a tentativa de implantação de uma nova ditadura. Resistir é preciso!”, finaliza a jornalista e escritora Nonô Noleto.

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