Marcus Vinícius Beck
O Brasil no golpe chileno
Resenha
Livro-reportagem revela que governo brasileiro não apenas conspirou para a queda de Salvador Allende, como chegou a dar auxílio a Augusto Pinochet na repressão a militantes contrário ao regime

Ex-presidente chileno Salvador Allende foi destituído do cargo em 11 de setembro de 1973 - Foto: Christian Belpaire/ Câmara Press/ Acervo Histórico
A área do velódromo do Estádio Nacional, localizado em Santiago, capital do Chile, tinha virado um espaço de tortura, com caixas de som tocando no último volume músicas de Beatles e Rolling Stones para abafar os gritos do suplício humano. O circuito auditivo, em vez de anunciar o nome de Garrincha ou Vavá, como fazia na Copa de 1962, intimava o próximo a ser interrogado e, não raro, espancado e assassinado pelos agentes da repressão.
No saguão principal, em meio a dezenas de corpos empilhados, reconheceu-se o rosto desfigurado de Victor Jara, o celebrado cantor da esquerda andina, também poeta, folclorista e diretor de teatro. Jara teve suas mãos e costelas quebradas ao ser agredido. Na tentativa de atenuar o sofrimento do músico, seus amigos usaram um cortador para aparar sua cabeleira. Não conseguiram: o corpo do autor de “El Derecho de Vivir”, com mais de quarenta tiros, foi jogado num canto do Estádio. As ideias revolucionárias dele foram silenciadas à força.
A cena, extraída do livro-reportagem “O Brasil Contra a Democracia”, escrito pelo jornalista e pesquisador Roberto Simon, retrata os assassinatos de opositores como política de estado da ditadura implantada por Augusto Pinochet após o golpe de 11 de setembro de 1973. Reportagem de fôlego, com 584 páginas, a obra revela como o general Emílio Garrastazu Médici era simpatizante do regime de Pinochet e mostra que agentes da repressão brasileira atuaram nas violações de direitos humanos ocorridas no Estádio Nacional, como uma espécie de consultores.
Com uma narrativa fluída e rítmica, Simon reproduz na obra um documento (até então secreto do governo do Tio Sam) no qual é narrado uma conversa entre os presidentes Richard Nixon e Médici. No diálogo, de acordo com o jornalista, o brasileiro fala que ele tinha um intercâmbio de agentes chilenos que faziam gosto pela derrubada de Salvador Allende. O livro revela como o embaixador brasileiro em Santiago, Câmara Canto, mantinha contato com as Forças Armadas e explica como setores da sociedade chilena eram simpáticos ao golpe de estado.
Talvez o relato mais macabro de “O Brasil Contra a Democracia” seja o de brasileiros presos no estádio que conheciam a tortura antes de chegarem no Chile, e o que viram após 11 de setembro foi algo semelhante ao que já rolava no Brasil. “Eles contam que, ao serem presos pelos chilenos, muitos foram recebidos com espancamentos e simulações de execução, passaram horas algemados em posições incômodas e foram vítimas de outras formas de violência, mas não da tortura no sentido estrito do termo”, escreve o jornalista.
“Eles contam que, ao serem presos pelos chilenos, muitos foram recebidos com espancamentos e simulações de execução” - trecho da obra 'O Brasil Contra a Democracia'
É, os agentes de Pinochet sabiam o era “pau de arara”: a escola brasileira lhes renderam um aprendizado de como causar dor nas pessoas. Simon conta que a ditadura brasileira chegou a fornecer treinamento para agentes da Dirección de Inteligencia Nacional, a Dina, temida polícia política responsável por comandar atentados contra autoridades contrárias ao regime de Pinochet na Argentina e Estados Unidos: ou seja, o Brasil foi a vanguarda da tortura e perseguição na América Latina. Afinal, valia tudo para tirar do poder o socialista Salvador Allende...
No entanto, a obra vai na contramão do que diz boa parte da esquerda ao afirmar que o Brasil operava por interesses próprios no país vizinho, e não obedecia às ordens de Washington, narrativa hegemônica até "O Brasil Contra a Democracia". Em um trecho, o jornalista cita uma declaração do escritor colombiano Gabriel García Márquez, para quem o Brasil havia virado “o braço direito e armado do neocolonialismo dos Estados Unidos”. No entanto, diz Simon, o Nobel da literatura estava equivocado: Pinochet era estratégico para a política externa brasileira.
Equivocadamente, os militares tupiniquins achavam que Allende não ganharia as eleições de 70, mas isso não impediu de ele ser visto com maus olhos por aqui. Uma vez eleito, o que se viu foi um show de atrocidades, um circo de desastres e um espetáculo horroso: o intelectual nazista Miguel Serrano discriminava Salvador Allende por... ser judeu e os veículos de comunicação... alimentaram uma campanha de difamação (encabeçada pelo El Mercúrio) que aflorou os ânimos dos opositores e da classe média daquele país, provocando uma greve puxada pelos caminhoneiros e as milicias de extrema-direita se sentiram encorajadas a tocar o terror no país.
De fato, “O Brasil Contra a Democracia” chega para iluminar a historiografia do período e isso pode lhe credenciar o rótulo de clássico do jornalismo de reconstituição histórica. Do ponto de vista da reportagem, é revelador: descobrimos graças a Roberto Simon que a influência brasileira no regime de Augusto Pinochet não ficava apenas no subterrâneo da ditadura militar, e era sim uma política de estado do general Médici. Sim, é preciso revisar a história para não repetir os erros no futuro. O jornalismo, com Simon, oferece esses instrumentos.
‘O Brasil Contra a Democracia’
Autor: Roberto Simon
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 584
Preço: R$ 104,90
'El Derecho de Vivir en Paz' se tornou um hino de resistência antifascista no Chile após a morte de Victor Jara pelos agentes da repressão de Augusto Pinochet - Foto: YouTube/ Reprodução