Marcus Vinícius Beck
O golpe de ouro
Cinema
Documentário explora extorsão que o regime militar impôs à população brasileira após a queda de João Goulart

Cena do documentário ‘Golpe de Ouro’ - Foto: É Tudo Verdade/ Divulgação
Não chega a surpreender a campanha “Ouro Para o Bem do Brasil”, criada pelo conglomerado de mídia Diários Associados assim que João Goulart fora destituído da presidência. Habituado a dançar conforme a música que lhe interessava, o magnata Assis Chateaubriand utilizou seus veículos de comunicação para difundir a campanha cujo objetivo era convencer a população a doar suas riquezas para o governo civil-militar. Em outras palavras, tirar do povo para dar à máquina pública.
O que, convenhamos, forneceria elementos para os militares estabelecerem uma falsa cumplicidade com o povo ao estilo união povo e Estado: seria um elo indissolúvel, cúmplice e fiel. Nesta época, vale ressaltar, o país estava submetido à bipolaridade da Guerra Fria, com suas reservas cambiais que podiam conter a alta do dólar e a iminência do delírio comunista cada vez mais forte. Era um quadro preocupante. Um bocado desolador.
Chatô não pensou muito: vamos criar uma campanha a partir da qual o povo brasileiro doaria jóias para gerar lastro e, com isso, mais dinheiro entraria no mercado?
Bom, é esse o ponto de partida do documentário “Golpe de Ouro”, novo filme do diretor Chaim Litewski, que venceu o festival É Tudo Verdade com o longa “Cidadão Boilesen”, em 2009. Essa devoção cívica, como retrata a obra a partir de uma consistente documentação visual e páginas de jornais da época, foi bem sucedida: mulheres e crianças faziam filas quilométricas para depositar suas jóias, com a conivência – graças a Deus! – das câmeras amigas do regime dos Diários Associados.
Se com “Cidadão Boilesen” Chaim mostrou uma São Paulo sob o tempo nublado da fardada e empresários financiadores da tortura, em “Golpe de Ouro” somos induzidos a ficarmos boquiabertos com as cenas e depoimentos que vão se sucedendo na tela, em uma devoção absoluta aos militares. Quem, por exemplo, doasse suas riquezas para o país seria considerado um “Legionário da Democracia”. Até uma “tábua de lei”, com 15 pontos a serem seguidos à risca pelas pessoas, foi criada.
Fossem os militares verdadeiramente preocupados com o país e não tivessem um projeto político sustentado pela perseguição, mordaça e assassinato, talvez evitássemos risadas ao nos depararmos com uma iniciativa tão abusiva como a encampada por eles após implantarem o terror e tirarem Jango da presidência. O que eu estou tentando dizer é que assistir “Golpe de Ouro” no momento em que o Brasil acelera seus passos rumo ao obscurantismo tem total sentido, e nos deixa melancólicos e deprimidos.
“Chatô não pensou muito: vamos criar uma campanha a partir da qual o povo brasileiro doaria jóias para gerar lastro e, com isso, mais dinheiro entraria no mercado?”
Claro, isso faz parte do projeto em curso por aqui. À medida que os entrevistados por Chaim – e a lista é imensa, porém é o que lhe confere um tom jornalístico ao filme – vai dos doadores, jornalistas que trabalharam na cobertura (com destaque especial para o braço direito de Chatô, Edmundo Monteiro), artistas (como o ator Lima Duarte), historiadores e políticos (simpatizantes ou não do regime imposto pelos militares), descobrimos que, muito além de promover o terror, a ditadura explorou os cidadãos como se os gorilas fardados se sentissem no direito de nos roubar.
Tudo isso, vale destacar, por vezes numa estrutura de humor forçada, mas comprometida com o sarcasmo. Ok, faz sentido? Faz, óbvio: o riso salva da tirania.
Muito mais do que simplesmente retratar uma manipulação da ditadura, “Golpe de Ouro” é um filme necessário porque ele revela como os militares conseguiram roubar a alma do povo brasileiro, extorquindo as riquezas dele, mas sem se esquecer de vidrar os olhos no presente, como quando aparecem imagens cômicas de manifestações verde e amarela na Avenida Paulista: aquelas dos patos, coreografias bizarras, lembra?
Com “Golpe de Ouro”, Chaim Litewski revela que a campanha para as pessoas doarem suas riquezas ao Estado arrecadou pelo menos 4 bilhões de cruzeiros, o que na grana de hoje deve dar cerca de 300 mil dólares. Mas o problema é que o ouro monetário sequer foi o suficiente para quitar uma parte da dívida externa do Brasil: o recém-instaurado governo militar logo se apressou em dizer que não tinha nada a ver com a campanha, uma vez que ela era de natureza privada.
Acontece que, de posse das jóias e cédulas depositadas para o estado, o general Kruel achou por bem pegar as riquezas e distribui-las em quatro instituições: a Casa da Moeda, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil e o Banco Central. Ah, antes que eu me esqueça: tudo, naturalmente, com a conivência do magnata Assis Chateaubriand, que fez coro ao golpe de 64 em sua cadeia de veículos de comunicação.
Embora desta vez não esteja concorrendo na mostra principal do É Tudo Verdade, Chaim continua preocupado em fazer um cinema focado em combater a nossa amnésia social. “Golpe de Ouro” está disponível no SPCine e Looke. Assistam.
‘Golpe de Ouro’
Diretor: Chaim Litewski
Gênero: Documentário
Onde: Festival É Tudo Verdade - com as plataformas SPCine e Looke
Gratuito