- João Moreno
O plano secreto dos militares 3: À direita, volver
Política
A escalada das Forças Armadas rumo ao controle político não foi “obra do acaso”: resquícios da Ditadura Militar, oficiais radicais organizados, ideologia neoliberal, interesses corporativos e o pensamento de Olavo de Carvalho são alguns dos responsáveis pela atuação do Partido Fardado nos dias de hoje

Por João Moreno, especial para o Jornal Metamorfose
Na última reportagem da série “O plano secreto dos militares”, narramos quatro momentos cruciais que colocam em evidência o protagonismo das Forças Armadas na política brasileira, nos últimos anos.
O professor Eduardo Costa Pinto explica que tais fatos históricos apontam para um “balançar de barcos”: usando da “instabilidade como instrumento de poder”. Ao longo da última década, os militares subverteram a institucionalidade, ultrapassaram os limites constitucionais e determinaram as “regras do jogo”, com o objetivo de, segundo eles, manter essa mesma institucionalidade às quais exercem controle e trazer credibilidade às ‘regras democráticas’.
Apesar do discurso legalista, esta reportagem trabalha com a hipótese, amparada por diferentes pesquisas e pesquisadores, de que, no fim, trata-se de exercício do poder, pois, como afirmou o então Comandante do Exército General Eduardo Villas Bôas, em encontro na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), no ano de 2017, “(...) os militares ganharam força (...) e não há qualquer exagero na afirmação de que as Forças Armadas hoje tutelam a frágil democracia brasileira”.¹
Esse movimento não é uma “obra do acaso”. Para compreender como chegamos até aqui, é preciso apresentar a ideologia que move as Forças Armadas e, especialmente o Exército Brasileiro, como instituição.
Se, por um lado, não é possível falar em “pensamento homogêneo”, como apontou Héctor Saint-Pierre, fundador e líder do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) da UNESP, por outro, há, inegavelmente, certa coesão que se expressa em algumas direções.
O pesquisador Francisco Carlos Teixeira da Silva, no artigo “Militares, “abertura” política e bolsonarismo: o passado como projeto”, as resumem em
Percepção de que a crise brasileira é causada pela corrupção;
Que há inimigos internos e externos em conluio contra o Brasil;
Sentimento de que as elites brasileiras são incapazes de dirigir a nação;
Crença num “Comunismo Internacional” atuante – e a interpretação das Forças Armadas sobre o que é Comunismo é vasta – petismo; trabalhismo; getulismo etc.²
De que as críticas à Instituição se apoiam em “ofensas imerecidas às Forças Armadas”.
O já citado Héctor Saint Pierre afirma que existe um sentimento “corporativista”, de busca dos próprios interesses, que se mantém acima dos demais, até de um suposto “nacionalismo” das Forças Armadas. Por isso, o “sentimento de pertença à corporação militar” faz com que os militares brasileiros confiem mais em soldados de outros países do que em seu próprio povo, fato comprovado na adoção de doutrinas de guerra de outras nações, por exemplo.
O pesquisador aponta ainda que certo positivismo, uma visão conservadora de mundo, apoiada na “ordem” e no “progresso”, ancora o modo de enxergar a realidade das Forças Armadas brasileiras. É assim que:
“(...) Cada período histórico está caracterizado por uma direção da corporação definida por algum grupo hegemônico (...) Do ponto de vista político institucional, se consideram um quarto poder moderador, aquele poder vigilante capaz de intervir no jogo político sempre que a (nunca definida) “pátria” corra perigo. Consideram-se a reserva moral da nação e dos valores ocidentais o que, para eles, legitimaria intervir no quadro político sempre que considerem oportuno (...)”
Héctor Saint-Pierre em entrevista à pesquisadora Ana Penido para o site Brasil de Fato, em outubro de 2019. O texto também está presente no livro Militares e a crise brasileira.
A ideologia militar não está desassociada da história das pessoas que fazem a instituição. Antes de ser uma suposta “novidade política”, esta reportagem irá apresentar a identificação dos militares em se afirmarem “Poder Moderador” como uma continuidade.
Nesse sentido, o já citado trabalho “Militares, “abertura” política e bolsonarismo: o passado como projeto” é muito claro: desde a década de 1950, um “núcleo duro” de militares, com “projeto de poder”, vinha se organizando, através de “(...) pronunciamentos, manifestos e tentativas de [golpes]”. Para o pesquisador, estamos falando de um “grupo coeso, reacionário, [embutido] nas instituições (...) que se lançou sistematicamente na conquista do Estado”. Esse núcleo “duro” se diferenciava da ala moderada dos militares por um projeto de poder de longo prazo.

Uma aproximação e um paralelo a esse passado gerencial podem ser notados através de uma comparação entre os tuítes do General Villas Bôas e a série de manifestações dos chamados “críticos da Quarta República”: militares que, entre 1945 a 1964, através de constantes manifestações políticas, que “ameaçavam políticos e instituições”, participavam da vida pública brasileira. O que ficou conhecido como “Manifesto dos Coronéis”, na década de 1950, usava da ameaça ao meio militar, da desordem e da ameaça comunista.
De forma semelhante, não foi o que o Alto Comando do Exército fez, nas vésperas das eleições de 2018, ao afirmar “(...) garantir a ordem institucional e não permitirá qualquer aventura promovida por inconformismo ideológico de candidato, seja qual for o resultado das eleições”?
Resquícios da Ditadura Militar
Para além da articulação já mencionada, de uma “rede ideológica de doutrinação” organizada por “determinados grupos de militares” para “disseminar os seus pensamentos e reafirmar, junto às tropas, a importância de eventos e de valores específicos das Forças Armadas”³, o historiador Manuel Domingos Neto, no artigo “Fileiras desconhecidas”, identifica que, durante a Constituinte, a política absolveu os crimes praticados durante a Ditadura, mas não apenas isso: o regime civil permitiu que os militares fossem ‘condecorados’ com o papel de salvaguardar a democracia brasileira, através do já mencionado artigo 142.

Para a historiadora francesa Maud Chirio, a função de “guardião da democracia” só seria possível diante da ingenuidade da sociedade civil em torno do tema: inúmeras análises e analistas acreditaram que uma ala ideológica dos militares teria sido sepultada por ‘mares democráticos’ .
Porém, para o já citado historiador Francisco Teixeira, agora em entrevista ao programa Diário da Crise, a transição para a Nova República, a partir de 1985, se transformou em continuidade para disseminação de uma ideologia tuteladora dentro dos muros dos quartéis. Incapazes de responsabilizar os milicos pelos crimes praticados durante a Ditadura, estes continuaram se articulando.
Bolsonaro
Esse fracasso do discurso de “controle civil” sobre o Exército, evocado desde os anos 1990, foi mapeado pelo trabalho do cientista político Eduardo Heleno de Jesus Santos. No texto “Controle civil? A ascensão de Bolsonaro e a encruzilhada do Brasil – militares, forças armadas e política”, para demonstrar a sua hipótese, o autor parte de quatro eixos, sendo a mudança da imagem de Jair Bolsonaro junto à instituição e a candidatura de militares nas eleições, a partir de 1994, os pontos de interesse para esta grande reportagem.
Quanto ao primeiro item, junto ao trabalho investigativo do jornalista Marcelo Godoy, é possível observar que, até a década de 1990, o atual presidente Jair Bolsonaro era visto como o indisciplinado pelo Exército Brasileiro, chamado de “sindicalista”, “que punha em maus lençóis seus comandantes”.
‘Expulso’ em 1988, teve a decisão reformada pelo Superior Tribunal Militar (STM). Entre os anos de 1989 e 1992, os generais Leônidas Pires Gonçalves e Carlos Tinoco Ribeiro Gomes o proibiram de entrar nos quartéis. A sua presença só foi permitida com a intervenção do tenente-coronel João Noronha Neto, ao afirmar a importância de um político no Congresso Nacional (CN) defendendo as pautas militares.
Já a partir dos anos 2000, as coisas mudaram. Jair Bolsonaro passou a receber convites para frequentar a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e foi condecorado inúmeras vezes: com a Ordem do Mérito Aeronáutico (Força Aérea Brasileira (FAB), 2004), com a Ordem do Mérito Militar (Exército, 2005) e a Ordem do Mérito Naval (Marinha, 2005), além da medalha Santos Dumont (Força Aérea, 2006).
Quanto ao segundo ponto, sobre a candidatura de militares em eleições, a partir do gráfico elaborado pelo cientista político Eduardo Heleno, com dados disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a partir do ano de 1994, é possível apontar que, ao longo dos últimos 30 anos: “a participação de militares da reserva das Forças Armadas diminuiu em 2002, mantendo-se estável até 2014 (...) no que tange ao pessoal da reserva das Forças Armadas, o número de candidatos identificados como militares vinha estável desde 2002, apresentando alta significativa em 2018”.
Nesse mesmo ano, 71 militares lançaram candidaturas em diferentes partidos. No Partido Social Liberal (PSL), legenda pela qual se elegeu Jair Bolsonaro, destaca-se candidaturas referentes à turma da Aman, de 1973 a 1977.[3] Com isso, cumpriram um antigo anseio dos militares: de formar uma bancada militar, como “vários grupos de pressão política” tentaram na década de 1990. No tempo presente, em junho de 2020, nove dos 22 ministros, incluindo o da Defesa, eram militares. Três deles ainda estavam na ativa.


Gráficos do trabalho de Eduardo Heleno de Jesus Santos, 'Controle civil? A ascensão de Bolsonaro e a encruzilhada do Brasil – militares, forças armadas e política'.
Neoliberalismo
Voltando aos anos 1990 e ao início dos anos 2000, já num ambiente democrático, esses oficiais, com dinheiro público, passaram a ter formação estritamente liberal.
Piero Leirner, em entrevista ao Instituto de Estudos Latino Americanos (IELA), afirma que a incorporação desta “visão neoliberal de gestão do Estado” aconteceu quando os militares das Forças Armadas foram obrigados a fazer cursos na Fundação Getúlio Vargas (FGV) – instituição conhecida por ter um direcionamento pautado pelos princípios do Consenso de Washington – como forma de melhorar o soldo.
Com isso, incorporou-se à instituição a ideia da necessidade de um “Estado mínimo” e da suposta “eficiência dos Mercados”. Na visão do antropólogo, para os militares, a partir de então, o desmonte do Estado significaria a totalidade das Forças Armadas numa possível tutela da burocracia estatal brasileira. De forma semelhante, em entrevista ao já mencionado programa Diário da Crise, o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva detalha como essa “visão de mundo” tornou-se conflitante com as gestões petistas.
A ideologia neoliberal, que passou a fazer parte do ideário militar brasileiro, via como um equívoco a “inclusão do pobre no orçamento", numa espécie de ‘reprovação’ às políticas sociais dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT).
Vale ressaltar que, ao mesmo tempo que o ideário neoliberal era incorporado à ideologia militar através da educação formal superior, o contato com as doutrinas dos neoconservadores estadunidenses, via Forças Armadas norte-americanas, também introduziu esse tipo de pensamento. No livro “Os militares e a crise brasileira”, o professor Francisco Carlos Teixeira escreve, em sentido figurado, que os militares brasileiros passaram a “exalar” Administração Pública".
Por outro lado, o jornalista Marcelo Godoy e a historiadora Maud Chirio destacam como foi importante, a esse modo de pensar, o surgimento de “grupos mantidos por oficiais da reserva, como o Inconfidência, o Guararapes e o Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), a fim de divulgar interpretações históricas sobre os inimigos internos, dos anos 1930 à atualidade”, escreve o jornalista.
Já a historiadora fala de uma rede, “uma nebulosa ultraconservadora”, na qual o Inconfidência faria parte, disseminando a sua visão de mundo para muito além de seu público habitual. Entre 1990 e 2000, passaram a fazer parte desta “nebulosa” outros Clubes Militares, além de empresários, militares históricos e jornalistas conservadores.
Olavo de Carvalho

Por fim, mas não menos importante, nesse período, como escreveu Piero Leirner em “O Brasil no espectro de uma Guerra Híbrida”, as ideias de Olavo de Carvalho “ganharam corpo, passando a andar sozinhas dentro dos muros dos militares”.
O discurso olavista, que também se origina na ‘alt-right’ norte-americana, foi responsável por criar, utilizando do ‘dialeto militar’, uma grande ‘false flag’ (bandeira falsa) ou “uma operação secreta projetada para enganar”, pois o “engano cria a aparência de que uma facção, grupo ou nação em particular é responsável por alguma atividade, disfarçando a sua fonte real”.
Ainda no dialeto militar, essa tal ‘false flag’ se baseava em três grandes ideais. O primeiro apontava que o Partido dos Trabalhadores (PT), enquanto governo, dividiu o Brasil e criou a ideia de “luta de classes”; o segundo dizia respeito ao suposto aparelhamento estatal petista a fim de implementar uma “revolução gramsciana”. Por fim, através da divisão do país e do aparelhamento do Estado, o terceiro ideal determinava que o PT havia corrompido as elites empresariais, via chantagem e coação. Daí ganhou forma, para os militares do alto comando, o sentimento de que as elites brasileiras são insuficientes para conduzir um “projeto de nação”; a única instituição capaz é as Forças Armadas.
“Como pudemos ver, essas noções nasceram precisamente lá atrás, nas palestras do Olavo de Carvalho, e ganharam autonomia porque entre militares funciona assim: “se me disseram que disseram que disseram, então eu digo (...) Assim é a cadeia de comando”, descreveu Piero Leirner, em sua tese de Livre-docência.
A influência de Olavo de Carvalho nas Forças Armadas é composta por várias camadas. Afinal, ele editou obras que compõem a Memória Histórica da Instituição e já foi responsável por ministrar palestras na Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), nos anos 1990. Parte da ideologia dos militares poderia ser chamada de “olavista”.
Em palestra ao Clube Militar, no ano de 1999, o filósofo declarou:
“Era só o que os comunistas queriam. Era só o que eles queriam para fazer da sua derrota militar a sua vitória política, porque naqueles anos estavam começando a entrar no Brasil as obras do ideólogo italiano Antonio Gramsci.
Este dizia adeus à teoria leninista da insurreição e criava uma nova estratégia baseada em duas coisas: de um lado, aquilo que chamava de Revolução Cultural, ou seja, o domínio do vocabulário, o domínio dos automatismos mentais, de modo que as pessoas, sabendo ou não, passem a falar e pensar como os comunistas e acabem aceitando o comunismo, com ou sem esse nome, como se fosse a coisa mais natural do mundo; de outro lado, o que ele chamava de a longa marcha da esquerda para dentro do aparelho de Estado, ou seja: ocupar todos os postos da burocracia.
Lentamente, com muita calma, através de ocupação de espaço, de nomeações, até mesmo de concursos, por exemplo, o governo abre um concurso para a Polícia Federal e, quando você vai ver, noventa por cento dos candidatos que se apresentam são comunistas, foram mandados ali para isso’.” (Registrado na obra ‘O Brasil no espectro de uma Guerra Híbrida).
NOTAS
¹ Fala dita ao professor e pesquisador Francisco Carlos Teixeira da Silva, citada no artigo Militares, “abertura” política e bolsonarismo: o passado como projeto, disponível na obra Os militares e a crise brasileira.
² O pesquisador Héctor Saint-Pierre fala em anticomunismo “doentio que associa com qualquer crítica ao status quo burguês”.
³ “Repitam conosco: não existe “ala técnica e racional” no Palácio do Planalto”