JM
O prazer do vinho
Comportamento
Pesquisa do Pão de Açúcar aponta aumento no consumo da birita na pandemia. Entenda como ela moldou o comportamento humano

Bebida surgiu nas montanha das Mesopotâmia - Foto: Pixabay/ Reprodução
Marcus Vinícius Beck
O vinho é o espelho da mente. Passaram-se mais de 20 séculos e a bebida símbolo do mito de Dionísio - o deus grego da embriaguez, do teatro, do sexo e dos rituais caóticos - continua estimulando a busca pelo saber. Platão, um dos pilares da filosofia, dissertou que a birita era uma maneira de testar os básicos e primitivos instintos humanos, submetendo-a às paixões despertadas pela epifania etílica e, tchan, tchan, tchan, impulsionadas pelo desejo provocado pelo charmoso goró das sensações humanas: raiva, amor, ódio, tesão, paixão, ambição e covardia são algumas das manifestações espirituais dadas ao homem como um bálsamo.
Platão, após uma noite encharcada de vinho e dialética, na obra “O Banquete”, clássico-mor da filosofia, relata que todos os convidados caíram na sonífera anestesia enóloga, exceto ele e Sócrates – seu mentor intelectual. O filósofo o descreve como um bebedor ideal: usa, e usa como um admirável dândi grego, por sinal, a embriaguez proporcionada pelo vinho, porém permanece em total controle de si e não se deixa levar pelos efeitos maléficos da bebida. A sociedade ateniense tinha tradição em organizar festas regadas à birita onde as conversas mais brilhantes e inteligentes ocorriam no berço das utopias e das liberdades comportamentais.

Escritor norte-americano era conhecido como um beberrão contumaz - Foto: Autor Desconhecido
Vai ver, a gente nunca esqueceu a sabedoria grega. Se nossos ancestrais da antiguidade lubrificavam a palavra com vinho, aqui trilha-se caminho semelhante na pandemia de coronavírus. Tal mudança nas tradições etílicas, abro um parêntese literário aqui, pra discorrer no alto do meu mais singelo lugar de fala, aumentou 15% no Brasil, de acordo com estudo da Ideal Consultoria. Os deliverys de vinhos comprovam essa escalada. Com as vinhotecas de portas abaixadas, resta-nos se debruçar sob o telefone, ou o zap, pra adquirir garrafas oriundas do Chile, Argentina, Itália, Portugal e, é claro, Espanha. Henry Miller teria orgulho.
Charles Bukowski também. Ernest Hemingway idem. “Vinho é a única obra de arte que se pode beber”, atesta o poeta Robert Louis Stevenson. A literatura e o vinho, de fato, andam de mãos dadas, sempre andaram. Na obra “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, o escritor português José Saramago refere-se a bebida, ao longo do texto, 29 vezes, 29! Mas os dois autores não são páreos para Hemingway. Beberrão profissional, o autor de “Por Quem Os Sinos Dobram” endossa uma verdadeira devoção à birita dionisíaca. A dose é repetida, repetida, não, é ampliada com devoção em “Paris É Uma Festa”, com nada mais do que 48 vezes citações.

Em 'Trópico de Câncer', romancista Henry Miller disserta sobre a vida embriagado de vinho - Foto: Autor Desconhecido
Miller, o cara que escrevera a trilogia de putaria filosófica e existencial, “A Crucificação Encarnada”, reflete a cada gole de vinho sobre a natureza humana. Sem um tostão no bolso, a virulência literária do romancista dos States – que odiava o Tio Sam, só pra registrar – foi eternizada pela francesa Anais Nin, sua amante fraudiana e guardiã de sua excitante escrita. Já Bukowski, o dirty old man canastrão, teorizou a estética da arte maldita com copos, vejam só, cheios, cheíssimos de vinho. O velho safado, ao longo de “Pedaços de Um Caderno Manchado de Vinho”, vai de John Fante a Nietzsche: trata-se de um triunfo da literatura enóloga.
Aumento
As vendas on-line vêm dando fôlego não só ao mercado de vinhos, mas alavancam o comércio em geral no Brasil e, assim, minimizam o prejuízo. Não seria diferente na enologia. Há uma especificidade, todavia, no nicho das bebidas: em épocas de grandes crises, posto aí a moléstia do coronavírus, as pessoas tendem a permanecer em casa e ingerir bebidas alcoólicas. Duas plataformas virtuais de vinho, a Wine e Evine, contam que houve crescimento de aproximadamente 50% nos pedidos no cenário pós-pandemia. Comprar no ambiente virtual é um hábito que ganhou força no Brasil em meio às restrições impostas pela pandemia.
“E o anfitrião, encenando sempre, encheu as taças, oferecendo uma ao faminto que a recebeu com vênia amável, levando-a em seguida aos lábios: “Que vinho sublime!” exclamou ele fechando de novo os olhos e estalando a língua. E mais vinho foi derramado nas taças, e outros supostos vinhos foram trazidos, de muitas espécies e sabores”, anota o brasileiro Raduan Nassar, o prosador anti-golpista – lembra?. Beber com alguém, especialmente com aquele que se gosta, é o teste mais rápido para avaliar o caráter humano. Bebe-se pra celebrar, pra amar, pra sonhar, pra sentir, pra desejar. O vinho, de fato, é a sabedoria fermentada da uva.
Saiba mais
‘Paris É uma Festa – Ernest Hemingway
Na obra, o velho escritor americano Ernest Hemingway disserta sobre suas desventuras em Paris dos anos 20. Hemingway cita 48 vezes a palavra vinho no texto. Preço: R$ 44,93 (na Saraíba). Editora: Bertrand Brasil.
‘A História do Mundo em 6 Copos’ – Tom Standage
Standage, editor de tecnologia da revista The Economist, reconstrói a História da humanidade a partir de seis bebidas importantes. O jornalista, munido de formidável aparato documental, remonta as sociedades Greco-Romana e a importância do vinho para ambas. Preço: a partir de R$ 75,00 (na Estante Virtual). Editora: Zahar.