Marcus Vinícius Beck
O protesto do peladão
Botequim Literário

Homem escala monumento Imperial em protesto à falta de vacinação. Foto: Reprodução/ Facebook
Os peladões não chegam a ser novidade. Em 1960, o cronista Fernando Sabino publicou uma obra na qual um sujeito vestido só de cueca vai buscar o pão na porta e, ao colocar o corpo para fora do apartamento, surpreendeu-se: o trinco se fechou.
Ao redor do Paço Imperial, no Arco do Teles e do chafariz do mestre Valentim, no Rio de Janeiro, antes rezava a lenda que costumavam acontecer coisas maravilhosas ali, especialmente quando a mentira diurna dava lugar à felicidade noturna. Mas o que dizer de, em plena tarde, um homem nu, peladão, subir tranquilamente numa estátua do Brasil de Dom Pedro, em pleno centro do Rio? Atesto: é a vacina, digo, a falta dela.
O protesto foi cirúrgico: “só saio daqui quando for vacinado”, avisou o manifestante. Num primeiro momento, imaginei que o sujeito estava, ora pois, inebriado pelo furor da cachaça, após ter bebido um pileque nos botequins da rua do Ouvidor, e lá tivesse sorvido uma cervejinha, um vinhozinho ou uma pinguinha – quem, pelo amor de Deus, dá conta de suportar os delírios cotidianos do bolsonarismo de cara limpa?
Sem pestanejar, disse expressivamente que dali ele não arredaria o pé. Acusaram-no, ah esses agentes de segurança, por ato obsceno – o que dizer então das 300 mil mortes? O mais adequado para a situação seria compreender que se tratava de um protesto artístico. Ou – penso eu –um ato carnavalesco de desobediência civil. Para nosso azar, o cronista Nelson Rodrigues já cantara a bola: “toda nudez será castigada”.
A verdade é que, meu rapaz, o peladão do Rio mostrou uma coragem que falta ao presidente, aos governadores e aos prefeitos. O Brasil não se entristece de empilhar caixões pelas valas comuns dos cemitérios: afinal, quem consegue rir dessa desgraça toda que acontece debaixo dos nossos olhos? Por isso, incompetente que sou, passo a bola para o mestre do samba Ataulfo Alves: “a maldade dessa gente é uma arte”.
Do Oiapoque ao Chuí, a imagem do peladão fixou no imaginário coletivo brasileiro. Na prática, é uma releitura do clássico homem retratado por Fernando Sabino que, traído por uma falha na porta de seu apartamento, não conseguiu regressar para seus aposentos. A traição, agora, se dá por outras vias, pela via da morte anunciada.
Pego-me escalando calmamente a estátua do Bandeirante, no cruzamento da Avenida Goiás com a Anhanguera, no Centro de Goiânia. Ali, assim como no Arco do Teles e do chafariz de mestre Valentim, ao cair à noite, também rolavam coisas interessantes: celebrava-se à vida no Chorinho, aglomeravam-se ao findar o expediente e ria-se na companhia de amigos e crushes. Mas isso era no período pré-pandemia.
Hoje, por protestar, talvez eu fosse acusado de ato obsceno, como o peladão do Rio.