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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

O som da esperança

Atualizado: 16 de out. de 2020

Entrevista

Multiartista François Muleka lançou recentemente EP “Ovo”, que conta com três músicas que têm em comum a sensação de esperança em relação ao mundo pós-pandemia

François Muleka reflete sobre ancestralidade em novo EP - Foto: Henrique Almeida/ Reprodução/ Azoofa

François Muleka já provocou estardalhaço na cena artística de Florianópolis (SC). Guiado por sentimentos oriundos da alma e movido pelas dinâmicas cotidianas de invisibilidade social, o multiartista - sim, ele também tem um trabalho emocionante nas artes plásticas, misto de expressionismo com impressionismo, vale a pena conferir suas redes sociais - coleciona em sua carreira apresentações na Mostra Cantautores de Belo Horizonte e no Rock In Rio. Com cinco discos na bagagem e shows nas principais casas de São Paulo, François decidiu explorar a ancestralidade no EP “Ovo”, que está disponível nas plataformas de streaming.


Lançado em 22 de setembro, o compacto reflete nas músicas “Um Segundo”, “Couragem” e “Samba de Jesus” sobre o presente, transportando sua verve artística libertária para um trabalho afrofuturista contra o preconceito. Por isso, François é taxativo na segunda faixa do EP: “Contra as formas de extermínio e exclusão: Couragem”. “Ovo”, como mostra a própria música, é um misto de provocações que abordam contextos de invisibilidade social, além de ser um retorno ao passado dos povos originários do País. “A ideia do disco é o ovo, o jeito como fomos jogados para o presente”, diz o artista ao Jornal Metamorfose, em entrevista por telefone.


François não tem dúvida: “A gente está atormentado pelo passado e futuro. Destruíram nossa história, nesse caso não só a dos afrodescendentes, mas os indígenas também. Até mesmo as pessoas brancas não sabem de sua história”, afirma. No entanto, as melodias e letras cantadas por ele no EP – ainda que tratem de questões tão dolorosas nestes tempos de isolamento social, como a incerteza em relação ao futuro – são um libelo à esperança. “Somos portadores reais da nossa história e do nosso destino. Esse é o momento de reinventar o futuro a partir de outros paradigmas”, afirma o artista.


A música e a arte de François estão em constantes diálogos e são necessárias uma à outra. São, por assim dizer, cores opostas e complementares dentro do espectro de coisas que o artista possa sentir. “Exerço essas artes desde sistemas operacionais bem diferentes, que conversam entre si e sabem operar até com os mesmos tipos de arquivo e navegar nos mesmos tipos de sítio”, explica. A maneira como essa relação é feita, porém, se dá por meio de linguagens artísticas que não são iguais, e sim opostas complementares, como poesia, música e artes plásticas.


“Acho que meu trabalho com a música e poesia tem uma pretensão de leveza e uma coisa voltada para a beleza, para o belo, ainda que visceralmente apaixonado pela beleza, guloso pela beleza, essa gula é como se fosse uma ordem do etéreo”, filosofa. François crê que seus trabalhos nas artes visuais são “a fim do grotesco”. “Falar do belo também é falar do grotesco, desde aquela leveza, também é falar sobre o peso. São conceitos que estão amarrados uns aos outros, e assim também é a minha música com a minha arte: elas estão amarradas como duas crianças brincando na gangorra”.


Criador livre que extrapola as limitações artísticas, François despontou no cenário musical brasileiro com o disco “Karibu” (2013). De lá para cá, lançou “Feijão e Sonho” (2015), “O Limbo da Cor” (2016) e “Fauno Aflora” (2016), e fez participação como arranjador de violão do álbum “Um Corpo no Mundo” (2017), de Luedji Luna, e participou do disco “Amor É Um Ato Revolucionário” (2019), do cantor Chico César, cujos arranjos são assinados por Marissol Mwaba junto com o próprio Chico. No palco, o artista colaborou ainda com nomes como Alpha Petulay, Alegre Corrêa, Filó Machado, O Teatro Mágico, Luciana Melo, Paulo Calasans e Ana Paula da Silva.


Enchente


No início do ano, quando a pandemia de coronavírus era um surto distópico distante, o multiartista François Muleka começou a apresentar comportamentos que, de acordo com ele, ficaram tidos entre seus amigos como engraçados e peculiares. Era uma premonição. E assim que o isolamento social se fez uma realidade, as coisas mudaram: “Alguns até comentaram comigo “olha só esse François ele tava sabendo”’, recorda-se o artista em conversa com o JM. Na época, ele havia recém chegado a São Paulo após viagem para Florianópolis (SC) e um dilúvio caiu sobre a capital paulista.


A cidade estava mergulhada no caos. “Essa foi uma chuva que impactou muito. Eu fiquei na rua com meu filho. A gente estava indo para um curso de tatuagem, que eu estava fazendo na época. Era aquela chuva, era aquele alagamento, então a gente foi descobrindo ali ao longo do dia o que estava acontecendo”, diz François. Nasceu então a ideia de pintar uma sequência de quadros. O objetivo? “Mostrar como o jeito que a gente vive atrapalha a nossa sobrevivência. Na verdade, ajuda a sobrevivência de uns em detrimento a de outros. Por que a gente se relaciona assim?”, pergunta-se.


Enquanto alguns ficaram em suas casas pedindo Ifood, argumenta o artista, outros ficam indo de casa em casa entregar – o que pôde ser visto, por exemplo, durante a pandemia do coronavírus, com a classe média no trabalho remoto e os pobres na labuta, e sem proteção. “Alguns vão morrer mais do que outros, mas não por mera casualidade e assim é com relação a todo tipo de catástrofe. Essa chuva mostrou isso, como ficaram as pessoas. Não preciso nem falar: cracolândia, qualquer rua perto do metrô Marechal, isso para falar de lugares que eu conheço aqui em São Paulo”, conta François.

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