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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

O tango argentino

Botequim Literário


Lionel Messi beija a traça da Copa América depois de vencer o Brasil, no Maracanã - Foto: Reuters


Saiu - para Bolsonaro - pior que o esperado.


Di Maria recebeu lançamento, colocou a bola no chão e, ao perceber o arqueiro brasileiro adiantado, encobriu-lhe com um toque sutil por cima do desafortunado camisa 1. A argentina, depois de 28 anos na fila, ergueu um troféu. E com gosto especial, em pleno Maracanã, salve Messi, viva Maradona, contra a Seleção, num torneio disputado na cova aberta da América Latina.


Futebol, dizia o lendário treinador italiano Arrigo Sacchi, é a mais importante das coisas sem importância. Sacchi sabia o que falava: levou o Milan a um bicampeonato na Europa na virada dos anos 1980 e 1990, revolucionou o ludopédio ao propor um estilo de jogo sob pressão e chegara ao vice-campeonato mundial na Copa de 1994, jogo que perdera para a seleção de Parreira.


Sim, gosto de futebol. Principalmente quando o jogo deixa de ser resumido apenas às quatro linhas. Em 1958, quando o país vivia imerso sob um complexo de vira-latas ao qual deixara Nelson Rodrigues embasbacado, Garrincha e Pelé infernizaram a defesa da Suécia. Foi uma folia danada. O Brasil era o país do futuro, do violão de Baden Powell, do jazz com samba de Tom Jobim, das crônicas sobre os bares que fecham numa quarta-feira, obrigado Paulo Mendes Campos.


O triunfo brasileiro nos gramados europeu estabeleceu - para citar uma expressão cunhada pelo historiador Luiz Antônio Simas - uma espécie de garrinchização do mundo. Ou seja, não importava a força dos brutamontes da defesa sueca, tampouco o estilo de jogo duro, sem beleza plástica e chato ao qual a turma do Velho Mundo estava habituada, e sim a habilidade para desconcertar as adversidades. Não é à toa, portanto, que o escrete entrou para a História.


Em 1962, durante o período que se chamava de o ‘mais feliz’ do Brasil, com a democracia, acreditava-se, consolidada e longe de ímpetos golpistas, Pelé se machucou e ficara fora da Copa realizada no Chile. E a responsabilidade recaiu sob Garrincha, que não decepcionou, levando o país ao bicampeonato. Era uma festa coletiva, com as ruas cheias, bêbados comemorando a genialidade do ponta-direita do Botafogo e, ora pois, o tri em 66 tratava-se de unanimidade.


Não saiu, como se sabe, dentro do esperado: após lidar com a eliminação na Inglaterra, Pelé, Tostão, Jairzinho, Rivelino e Gérson encheram os olhos do público de lágrimas pela beleza da bola jogada no México, quatro anos depois. Nem a ditadura, responsável por matar e torturar nos calabouços enquanto a Seleção fazia um gol atrás do outro, foi capaz de roubar o brilho do time montado pelo comunista João Saldanha – ainda que, é verdade, o ditador Emílio Garrastazu Médici obrigara-se a ser fotografado ao lado de Pelé com a Jules Rimet.


Se a dama de ferro Margaret Thatcher resolveu entrar em guerra contra a Argentina na Ilha das Malvinas, Maradona travestiu-se de Charles Chaplin, driblou a seleção inglesa inteira e só não entrou com bola e tudo, como canta o mestre Jorge Ben Jor em "Fio Maravilha", porque teve humildade. No mesmo jogo, o el pibe dividiu no alto a bola com o goleiro, maior que ele, empurrando-a para o fundo das redes. Era la mano de dios e, claro, a justiça pelas Malvinas.


O que se viu naquele 22 de junho de 1986 foi um tango de Astor Piazzolla em forma de futebol: dramático, mas intenso; trágico, mas brilhante. Maradona entrou ali para o grupo dos gênios da pelota. Isso sem contar, óbvio, que – ao acabar com o jogo – ensinou a todos nós que não se trata apenas de futebol: trata-se, isto sim, da ginga, do jeito, da malandragem contra a força bélica.


Tome como exemplo o caso de Romário, na Copa dos Estados Unidos, para cujo país o jogo era batizado de ‘soccer’. Em 1994, na complicada partida contra a Suécia, válida pela semi-final da competição, o baixinho subiu mais do que os grandalhões zagueiros e empurrou a bola para as redes. Baixinhos, uni-vos. O talento pode vencer a truculência, o molejo deve fazer com que cheguemos mais longe que os bem-nascidos europeus. É preciso apenas estar no lugar certo.


No Mundial da Coréia e Japão em 2002, ano em que o primeiro - e único - presidente operário do Brasil sobe a rampa do Planalto, Ronaldo e Rivaldo infernizaram a lógica metódica dos alemães. Aquele corta-luz que antecedeu a falha de Oliver Kahn... Éramos penta, penta!


Pena que, doze anos depois, levamos sete da mesma Alemanha, em casa. De quebra, a camisa da Seleção virou símbolo da extrema-direita, essa mesma que forçou a barra para receber a Copa América, digo Cova América, no Brasil. Mas no meio do caminho tinha um Messi, tinha um Messi no meio do caminho, tinha um Messi, e o 10 argentino levantou a taça do torneio. Gracías.


Podem continuar evitando o óbvio. Mas, tenham certeza, nunca foi só futebol.

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