JM
Orgasmo literário
Atualizado: 4 de fev. de 2020
Ensaio
‘Trópico de Câncer’ e ‘Sexus’ colocaram as convenções da sociedade americana em polvorosa com uma prosa erótica, anárquica e transgressora

Caricatura do escritor Henry Miller
Sorry, sorry. Sempre curti ler a literatura norte-americana. Descobri a prosa visceral dos realistas aos 14, 15, 16 anos, sei lá, e nunca mais parei. Sempre fui guiado literariamente por Charles Bukowski, John Fante, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner, Jack Kerouac, William Burroughs, Allen Ginsberg, Tom Wolfe, Norman Mailer, Gay Talese e Hunter S. Thompson. São os grandes narradores, são os inventivos da estética literária do século XX, são os vanguardistas porra-loucas, são os gênios. Precisa de mais?
Nunca tive preguiça intelectual para a prosa do Tio Sam. Se tem uma coisa que o capitalismo produziu, e ainda assim provando do seu próprio veneno, foi um bando de escritores putos com o american way of life: vai dizer que On The Road não é um livro indignado? Que Medo e Delírio em Las Vegas é conformado? Que Factotum é uma obra de um cara que não está desesperado por não ter um emprego que preste? Sou fissurado nos romancistas norte-americanos, eu sei… Cara, desista, siga em frente, descubra novas referências...
My God! Cheirei, e ainda cheiro, desculpem-me pelo infame trocadilho, Fante e seu Pergunte ao Pó. Por exemplo, o Hemingway do qual eu gosto é o Hemingway que viveu na Europa no período entre guerras, com suas frases soando como um soco de Muhammad Ali, com sua objetividade desgraçadamente sem frescura como um rock and roll saindo do auto falante enquanto tento dar sentido e vazão aos pensamentos que borbulham em meu cérebro. Fitzgerald foi o cara que li, reli e copiei suas frases em busca de construir meu próprio estilo.

Da esquerda à direita: Maria Medeiros, Fred Ward e Uma Thurman em cena do filme ‘Henry e June’ - Foto: Reprodução
Uma falha, é óbvio. Podem me acusar de plagiador impiedoso, tanto faz, neste caso até o xingamento mais punk vale. Qualquer merda. A verdade é que não troco o Jornalismo Gonzo e sua depravação estilística pelo velho e decadente lead e sublead. De novo (?) falando sobre o Gonzo, e o objetivo deste ensaio sequer é falar sobre Hunter Thompson: é falar sobre um dos maiores escritores - americano, é claro - que foi toscamente perseguido quando lançara Trópico de Câncer, em 1933. É claro, senhores e senhores, que se trata de Henry Miller.
Por favor, joguem a primeira granada. Estou aqui para falar sobre o autêntico velho safado e até agora não disse nada com nada. Pode? Mas, vamos lá: nascido em Nova Iorque em 1891, é um dos maiores romancistas e ensaístas que a literatura já viu. Oh, yeah! E um dos mais polêmicos. Foi censurado, perseguido, achincalhado, teve sua libido proibida pela moral e os bons costumes da sociedade americana no período do macarthismo. Explico: tudo por causa de sua obra essencialmente autobiográfica, magistralmente erótica e sem papas na língua.
Que língua! Seus livros puseram os costumes do Tio Sam em polvorosa. Deus Salve a América, Ave-Maria, God Bless, Nossa Senhora! Pois bem: o caso é que acabei de ler, num sopro só, o Sexus, clássico maldito de Miller, relançado no Brasil em 2005 pela Companhia das Letras, e o Trópico de Câncer, lançado pela José Olympio. São memórias pessoais vistas com uma lupa biológica e sociológica e narradas num tom exaltado de um profeta bêbado. Um verdadeiro rock and roll. Overdose de parágrafos pornográficos. Porra!
Vida e obra
Vamos deixar o blá blá blá de lado e parar com a brincadeira. Ao que de fato interessa: empolgado com umas putarias bêbadas, coisa de escritor atrás dessa bobagem de inspiração, resolvi pegar de novo Henry Miller e seu Trópico de Câncer, obra que, aliás, foi a estreia do autor no mercado editorial, quando ele já estava com mais de 50 anos. Trópico é considerado sua obra-prima, e o filme Henry & June, que foi dirigido por Philip Kaufman e que revelou a atriz portuguesa Maria de Medeiros para o mundo, é igualmente foda.
Medeiros interpretou a escritora francesa Anaïs Nin, com quem Miller e sua então mulher, June, tiveram uma “ménage à trois” que deu o que falar no cenário underground de Paris na década de 1930. E o que dizer de Sexus? O primeiro livro da famosa trilogia autobiográfica denominada A Crucificação Encarnada, que inclui também as obras Plexus e Nexus, conta bastante como era o relacionamento de Henry e sua esposa, que o largou em Nova Iorque, sem grana, sem expectativa, sem trampo, e foi tentar ser atriz em Paris.
Sexus relata ainda sua pindaíba para se tornar escritor, entre uma foda aqui e outra acolá, entre artistas medíocres, putas de quinta e pileques vagabundos, na cidade de Nova Iorque. O livro tem ainda irreverentes considerações sobre o ofício da escrita. “O escritor geralmente não quer escrever”. Ou: “Um gênio não inspira o outro”. Ainda: “O escritor deveria enlouquecer! As pessoas estão fartas de enredo, fartas de personagens. Enredos e personagens não criam vida. A vida não está no andar de cima: a vida está aqui, agora”.

Da esquerda à direita: Anaïs Nin e Henry Miller - Foto: Reprodução
Henry Miller não perdia tempo. Ia vivendo e escrevendo. Escrevendo e vivendo. Jamais sem separar uma coisa da outra. Isso, inclusive, fez ele ir morar por um bom tempo em Paris, onde produziu boa parte de sua obra. “A primeira coisa que a gente nota, aqui em Paris, é que o sexo está no ar”, escreveu. E não houve melhor combustível para o autor do que a transa. Dias de Paz em Clichy, escrito quando voltou à sua terra, é o relato, a partir do seu alter-ego Joey, de dois anos cheios de tesão em que dividiu uma morada com um amigo.
Morto em 1980 enquanto dormia, Henry Miller nunca gostou dos Estados Unidos, que, segundo ele, era “o mais mecanizado e robotizado dos países”. Quem disse que a literatura americana é uma puxação de saco demasiadamente esquizofrênica de um dos países mais doentes do mundo? Nada disso. E a prosa com trepadas febris, porres homéricos e descrições hilárias de Miller escanca isso para quem quiser ler e reler. São linhas angustiadas, filosóficas, anárquicas, mas deliciosamente imprescindíveis. Miller é foda.