Marcus Vinícius Beck
Os versos da tortura
Literatura
Poeta Alex Polari conta em versos como era o sadismo dos militares nos porões da caserna, numa obra que merece ser lida e não esquecida

Alex Polari em 2014 - Foto: Bruno Torturra/ Reprodução
Alex Polari estava com 20 anos e militava na organização clandestina VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), responsável pelo sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, quando foi preso, no Rio de Janeiro. Torturado pelos militares, Alex testemunhou as sessões de suplício humano as quais Stuart Angel, 26, filho da estilista Zuzu, teve de ser submetido pelos milicos: ele foi arrastado por um jeep no pátio da base área do aeroporto Galeão com a boca no cano de descarga do carro em que lhe amarraram.
Alex passou dos 20 aos 29 anos no xadrez: com uma pena de 80 anos de reclusão, só foi liberado aos 29, em 1980, assim que a Lei da Anistia foi sancionada pelo general João Batista Figueredo. Dois anos antes, em 1978, ele publicou o livro “Inventário de Cicatrizes”, uma reunião de poesias que escrevera durante o período em que esteve no cárcere. Os versos são duros, tristes, angustiantes e servem como documento para que os horrores protagonizados pelos professores de Jair Bolsonaro não sejam esquecidos da memória coletiva brasileira.
“Vi companheiros desaparecer no cárcere... mas não queria estender muito isso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão”, afirmou o poeta ao jornalista Bruno Torturra, em entrevista publicada na revista Trip. “Dificilmente nós vamos encontrar uma solução para a crise planetária fora da revolução espiritual. Todas as outras formas de ler o mundo faliram no último século”, pontuou ele, que é adepto do Santo Daime e é um dos líderes da Comunidade Céu do Mapiá, no Acre.
De tendência contemporânea, com estética moderna, na poesia dele se manifestam de maneira forte e intensa experiências desumanas de prisão e tortura. Segundo o crítico literário Carlos Henrique de Escobar, “Alex político e Alex poeta, como alguns dos seus muitos companheiros em diferentes prisões do país, alguns já libertados, outros exilados, poderão significar toda uma postura e uma produção artística que rompe com os padrões estéreis e reacionários de até então”.
Os poemas fazem alusão aos horrores da dor, como os versos de "Paisagem": “As saudades de Domingo, Parecem-se com as estiagem, Carentes de tudo, Os prisioneiros, Perambulam, Rentes uns aos outros, Áridos de risos, E acorrentados a mesma dúvida, Lêem as mesmas bulas de redenção, Nos preâmbulos das auroras, Indeferidas”.
Já em “Erotismo e Nylon (Impressões de Uma Calcinha em 1 Auditoria), Alex faz uma homenagem à peça de roupa íntima feminina e a beleza humana. Outro trecho trata da luta armada, um dos temas recorrentes em sua poesia. “Aí eu virei para mamãe, naquele fatídico outubro de 1969, e com dezenove anos na cara, uma mala na mão e um 38 no sovaco, disse: ‘velha, a barra pesou, saiba que eu te gosto”, escreveu.
Conheci os versos de Alex Polari por meio de um amigo, que me mostrou a obra “Inventário de Cicatrizes”. Dela separei dois poemas que não deixam cair no esquecimento como o autoritarismo mata a vida e aniquila a expressão dos sentimentos. Ei-los:
Os Primeiros Tempos da Tortura
Não era mole aqueles dias
de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.
Havia dias que as piruetas no pau-de-arara
pareciam ridículas e humilhantes
e nus, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.
Havia dias em que todas as perspectivas
eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo cética
de não tomar porradas nem choques elétricos.
Havia outros momentos
em que as horas se consumiam
à espera do ferrolho da porta que conduzia
às mãos dos especialistas
em nossa agonia.
Houve ainda períodos
em que a única preocupação possível
era ter papel higiênico
comer alguma coisa com algum talher
saber o nome do carcereiro de dia
ficar na expectativa da primeira visita
o que valia como um aval da vida
um carimbo de sobrevivente
e um status de prisioneiro político.
Depois a situação foi melhorando
e foi possível até sofrer
ter angústia, ler
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas
que aí fora reputamos
como experiências cruciais.
Moral e Cívica II
Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu caí em maio
mas em setembro tava pelaí
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
e rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá – o filho da puta
segurando uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.