JM
Ouvindo o velho Belchior

Ilustração: Heitor Vilela/ Rabiscos e Escarros
Marcus Vinícius Beck
Lembra-te, minha companheira, que na parede da memória da embriaguez, da utopia e do tesão essa lembrança é o quadro que dói mais, que já faz tempo, faz demais, eu vi você na rua, com cabelo ao vento e com gente jovem reunida. Será que nossos ídolos vão ser os mesmos, será que depois deles não vão aparecer mais ninguém? Viver é melhor que sonhar e e eu sei que o amor é uma coisa boa, muito boa, boa pra cacete.
Lembra-te, minha companheira, por mais que tenhas à mão o pito natural da fé, quer dizer, a erva das boas vibes, é preferível uma garrafa de vinho vagabundo às três horas da madrugada com Alucinação. Espero-te, ô se espero, na distriba qual um boêmio maloqueiro e sofredor, graças a Deus!, do tempo em que a gente podia botar os pés pra fora do cubículo residencial sem ficar com a pecha de matador. Triste tempos.
A gente está, quer dizer, estou com o cocuruto freudiano transbordando momentos, desejos, sensações, sentimentos... É tanta transa da revolução pra poucos dias de isolamento social... Seu Jair, o inquilino do Palácio do Planalto, deve ir à loucura... Ô época boa, saudades de se engalfinhar nas salas das ocupas, dos nem tão longínquos anos de 2016, para o lesco-lesco da revolta contra a PEC do Teto de Gastos.
Diante das tosquices do molambo que se faz presidente, juro, tenho sangrado demais e tenho chorado pra cachorro, como tenho, minha companheira de sonhos intranquilos. Se vier me perguntar por onde andei, de olhos abertos lhe direi, via chamada de vídeo, aff, que esse desespero é moda nestes tempos de modernidade líquida, me desculpa pela infâme paráfrase pra esse lirismo solitário, meu caro Belchior.
Xi, minha companheira de delírios excitantes, sei dos teus desesperos por telepatia, mas agora eles terão de ser pelo Zap Zap (é cafona pra cacete, tô ligado, mas...). Você nem sente, nem vê, mas o passado é uma roupa que não serve mais. Como Poe, Ginsberg, Leminski, poetas porra-loucas filhas da putas irremediáveis, pergunto ao passarinho “Black Bird”, o que se faz?
Dificilmente se arranca a lembrança, a lembrança, a lembrança, meu caro Otto, por isso agora está dilacerando, por isso não se esqueça: dói. A distância, a falta de tu, a boêmia, o futiba nosso de cada dia, o Corinthians, dói!
Lembra-te, minha companheira, a gente saiu fracassado das trincheiras revolucionárias. Por pouco não deu cana, mas não adiantou: o front contra a PEC, mesmo com nosso santo deboche libertário nas ondas da Rádio Libertária, não durara mais do que o formidável Coração Selvagem numa noite de volúpia e prazer - quando a juventude ainda fazia essas coisas e, pasmem, quando não era “depravação”, era amor.
Mais uma taça do vinho da melancolia.
Até perdi as contas: segunda? Terceira? Quarta? Quinta?
Sei lá...
Reflito: os aprumados boçais a serviço do mercado, que votaram a favor do congelamento na saúde, agora dão entrevistas coletivas para falar sobre a crise. Exibem diariamente soluções com arrocho para que evitemos a disseminação do vírus.
Ok, foi doloroso, a gente podia evitar a desgraça desumana do vampirão (o golpista da mesóclise) e esse desvio temeroso no percurso da História personificado pela humorística figura do seu Jair (o revival tosqueira de 64) , o sujeito com o histórico de ‘atleta’. Graças ao Bom Deus, todavia, há uma separação entre eles e nós.
Lembra-te, minha companheira, entre as tantas promessas que a gente fazia um ao outro, coisinhas miúdas que não resistem a um porre no boteco da esquina, aff, ou resistem, até resistem, vai, uma se destaca: o amor é revolucionário. Lembra-te que dizias que se eu sentisse saudades era só mentalizar que estavas pertim?
Estou mentalizando, mentalizando, mentalizando... Tudo poderia ter mudado, oh yes, pelo trabalho que fizemos, tu e eu. Mas a grana é cruel e um vento levou os amigos para longe das conversas, dos bares, da boêmia, do tesão. Nossa esperança de jovem não aconteceu, não aconteceu.
Mesmo assim, posso dizer que te amo, pela quarentena da chamada de vídeo do zap, ou esperamos acabar o pronunciamento do seu Jair?
Marcus Vinícius Beck, jornalista e escritor. Autor do livro-reportagem ‘Diário Subversivo’