Lays Vieira
Por um amor dialético? (ou: a crítica crítica do amor liquido contemporâneo)
Ensaio
A cientista política Lays Vieira reflete sobre o amor em tempos capitalistas

Foto: Reprodução
Encare o título de uma forma mais ampla. Os vários amores: familiares, amigos, amorosos, sexuais, o que você quiser. A perspectiva é ampla, mas talvez o foco maior recaia sobre o terceiro, sim. Há anos eu não escrevo um ensaio. Talvez eu não tenha sensibilidade poética ou artística. Mas, escrever é sempre um ato impulsionado por aquilo que vivemos ou vemos. Então, contrariando as más línguas, até os insensíveis conseguem escrever sobre coisas sensíveis.
Recentemente li um post que reproduzia uma breve fala de uma professora de filosofia, na série Merlí – Sapere Aude (disponível no HBO Max): “Há pessoas que se casam para não ficarem sozinhas. Poderíamos perceber uma certa angustia ao procurar esse amor? Você não acha que o Tinder é uma resposta para essa angustia? Dizemos ao algoritmo quais são as nossas preferências e ele procurará uma pessoa que se encaixa no nosso perfil. Alguém que nos complementa. Mas, o que o filósofo Lucrécio disse em ‘Sobre a natureza das coisas’? Ele disse que a complementação ideal não existia. O amor não é uma bela história...entre duas almas idênticas destinadas a se entender. Se todos estão cientes desse princípio, haverá menos batidas”.
A conclusão parece óbvia para alguns. Mas, não para outros, afinal, por um lado, é algo muito subjetivo o que cada um busca em um outro. E, por outro lado, é um processo complexo entender que a completude não está no que o outro pode te oferecer ou o espaço vazio que ele pode ocupar por um tempo e em determinado momento; mas sim em si mesmo. Consciente ou inconscientemente, essa angustia nos persegue.
Contrariando também a mim mesma durante toda a graduação, terei que concordar com outro filosofo e sociólogo, Zygmunt Bauman, quando ele fala que o que mais vemos hoje, dentro da sua lógica dos amores líquidos, são aqueles que confundem atração física com amor e daí pulam de um relacionamento em outro, se apaixonam por duas, três, infinitas pessoas em um mês. Nada de errado com o desfrutar das atrações, pelo contrário, é normal. Confundi-las é que é o problema para o autor, pois quando os desejos e as necessidades acabam, os relacionamentos acabam.
Bauman teorizou sobre isso no início dos anos 2000. O neoliberalismo já havia se implementado e iniciava a intensificação advinda com o desenvolvimento das redes sociais. As professoras de Ciência Política, Wendy Brown e Jodi Dean, são exemplos de pensadoras que se debruçam sobre o neoliberalismo e suas consequências em várias das esferas da vida, a exemplo das nossas subjetividades, dos processos psíquicos.
Eu sei caro leitor, para quem não está familiarizado com esse debate parece estranho falar que um fenômeno tão comumente banalizado e associado ao econômico pode ter tanto peso na relação do subjetivo com tudo ao seu redor, mas lembre-se (como o aclamado filme "Parasita" demonstra bem), nossa percepção e relação com a realidade é determinada pelas condições materiais as quais estamos inseridos. Assim, muitas vezes, nossas relações (familiares, amizades, amorosas) com os outros se pautam por uma lógica mercadológica implícita e naturalizada: o que o outro tem a me oferecer que vale eu investir nisso? O que eu ganho? “Droga, eu investi meu tempo em algo e não deu certo”.
Calma! Não me julguem como uma acadêmica chata que tenta explicar tudo com base em teorias e livros. Tedioso. Não espontâneo. Mas, se dê uma chance para pensar mais detidamente sobre o nosso agir no mundo e com os outros. Talvez esse exercício te surpreenda. E se acaso você se perceber concordando com tudo ou algo acima, não se decepcione e desista.
Assim como a dialética, tudo que existe se contradiz. Talvez tentar ler as nossas relações um pouco sobre essa ótica pode ajudar. Dialética? Trago aqui a didática síntese feita pela socióloga Sabrina Fernandes em “Se quiser mudar o mundo”. Comumente resumida em tese/antítese/síntese, a elaboração não está errada, mas necessita de fundamento para entender o movimento. A dialética é um movimento, não possui princípios fixos pois é uma filosofia da mudança que se dá por uma serie de interações. O grande Hegel não inventou a dialética, mas é um de seus autores mais conhecido, quiçá, o mais. Entretanto, aqui, não nos serve a dialética idealista hegeliana, já que ela consiste no fato de que o movimento de criação daquilo que é real parte do pensamento, do ideal. O que se idealiza não cria o real (mesmo não querendo dizer que o real não existe sem a ideia – o idealizar tem sua importância).
O movimento não é linear e nem simples. Nisso, quero me deter especialmente no princípio da negação. Ela carrega o embrião daquilo que nega. Uma árvore é a negação de sua semente, mas também carrega a semente para que se torne árvore. A dialética ocorre em meio a relações contraditórias, seja entre humanos ou coisas (foco no primeiro), ou seja, o movimento carrega em si seu oposto. Só que, diferente da dialética idealista hegeliana, a marxista é movida pela materialidade dessas relações e coisas.
Não precisamos do ideal para conhecer o real. Na verdade, o nosso ideal é resultante da concretude (de novo Parasita). É necessário criar algo que seja novo e concreto, que faça sentido para nós na concretude da nossa realidade. Talvez essa seja a grande dificuldade, porque a dialética não um movimento de cada vez, que se dá em ordem, mas sim uma sucessão de fatos e conflitos que ocorrem ao mesmo tempo. E ai sim, temos aqui um princípio constante: a contradição. Disso, decorrem três coisas: as mudanças não ocorrem de forma alinhada; não existe um ritmo fixo de mudança; e tudo está conectado e entrelaçado. É esse o nosso desafio concreto para mudar o nosso meio e nossas relações. A negação é sempre possibilidade! X tem seu oposto, sua negação em Y, mas apenas a superação dessa negação, em uma nova síntese consegue se sustentar. Por isso, estar com o diferente, o oposto, te impele a esse movimento.
Não existe par ideal ou relação perfeita, nenhum algoritmo é capaz disso. Eu aposto que você irá aprender muito mais com a negação, a oposição, o contrário, o diferente (uma força humana dinâmica) e a síntese que pode surgir disso. Um constante e infinito movimento de altos e baixos. A primeira opção, idealizada, é fácil, a segunda não e irá requerer um esforço maior do que você gostaria, deixar de lado zonas de conforto e entender que para uma síntese existir muito do que tinha antes permanece, mas muito do que também existia deve ser deixado, em ambos (tese/antítese) e isso não ocorre de um dia para o outro (fazer o que?! Marxista é adepto de processo histórico – diferente da concepção de tempo que o capitalismo prega...tudo rápido, imediato, presa, impaciência, EU quero o agora, instantâneo, descomplicado). É muito mais sobre construir algo possível e valorizar a diferença do que querer que alguém te faça feliz. Qual será a melhor opção para você?