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Dois meses de protestos: Haiti já registra 30 mortes em confrontos
Protestos
Com o intuito de forçar a renúncia do presidente Jovenel Moïse, partidos de oposição, com o apoio popular, têm anunciado a convocação de manifestações em todo o país

Foto: Reuters/ Andres Martinez
Desde 16 de setembro, milhares de haitianos têm ido às ruas exigir a renúncia do presidente Jovenel Moïse, que está no poder desde 2017. As manifestações acontecem constantemente e os principais motivos levantados são a escassez de combustível - em falta desde agosto -, desemprego, inflação e insegurança. Além disso, carência de água potável e alimentos, degradação ambiental e, principalmente, a alta corrupção no país têm contribuído para o descontentamento popular. Devido aos últimos protestos, somado à falta de abastecimento, toda a atividade econômica do país está paralisada, inclusive o transporte público. Escolas e negócios foram fechados.
Esta já é considerada a maior onda de protestos de toda a história recente do Haiti. A insatisfação contra Moïse atinge diversos setores da sociedade, como artistas, empresários, trabalhadores sindicais e membros da classe média e elite intelectual. Apesar das últimas semanas terem sido marcadas por intensas manifestações, as primeiras fagulhas de descontentamento contra o atual governo se deu em fevereiro, com protestos que deixaram 41 pessoas mortas e 100 feridas. Os manifestantes estão revoltados com as baixas condições econômicas do país, que continua sendo o mais pobre da América, segundo dados de pesquisa divulgada pelo Fundo Monetário Internacional, em 2017.
Os escândalos de corrupção envolvendo Jovenel Moïse também contribuíram para abalar sua imagem perante a população e também em suas alianças políticas. Em 2008, investigações encabeçadas pelo movimento anticorrupção Petrochallengers revelaram que houve desvio de bilhões de dólares no PetroCaribe - programa de petróleo com aliança entre Venezuela e países caribenhos, que tinham acordos para melhorar os serviços públicos no país. Ainda, há acusações em relação às doações que a ilha recebeu após o terremoto de 2010, pois os serviços públicos teriam continuado igualmente precários.
Sem um governo efetivo desde março, em consequência de um bloqueio pela oposição no Parlamento, a história da democracia do Haiti é marcada por instabilidade. Desde 1990, data em que houve a sua primeira eleição democrática, o país já teve 14 presidentes, sendo que dois chegaram ao poder por meio de golpe e, apenas três concluíram o mandato de cinco anos.
Oposição
Os partidos de oposição têm se movimentado, a fim de forçar a renúncia de Moïse, apoiando e convocando protestos em todo o país. O presidente chegou a anunciar a criação de um "comitê de diálogo", na tentativa de encontrar uma saída democrática, mas, o projeto foi vetado pela oposição. Em 11 de outubro, 107 organizações da sociedade civil, apoiadas pelos partidos contrários à atual gestão, apresentaram um documento de oito páginas, que defende uma transição de governo.

Foto: Reuters/ Andres Martinez
Mortes e confrontos
Somente entre 15 de setembro e 9 de outubro, estima-se que 30 pessoas morreram nos protestos, sendo metade agentes policiais. Durante a manifestação do dia 23 de setembro, o senador haitiano Jean Marie Ralph Féthière atirou contra manifestantes, deixando duas pessoas feridas, uma delas é a fotojornalista, da Associated Press, Rebecca Rockwell e um segurança.
De acordo com dados divulgados pela Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH), em 3 de outubro já haviam 17 mortos e 189 feridos. No dia 4, a situação se intensificou e houve confronto entre manifestantes e a polícia. De um lado, a população se munia com paus, pedras e coquetéis molotov, do outro, policiais revidaram com gás lacrimogêneo e canhões de água, na tentativa de reprimir os protestos.
No dia 11, o protesto aconteceu ocorreu depois que o repórter Néhémie Joseph, da Rádio Méga, que cobria os protestos, foi encontrado morto a tiros em seu carro na noite anterior, em Mirebalais. Joseph é o terceiro jornalista haitiano morto em menos de dois anos. Os outros dois são: Pétion Rospide, da Rádio Sans Fin, morto a tiros enquanto dirigia para casa e Vladjimir Legagneur, que desapareceu em março do ano passado.
No dia 13 de outubro, em um protesto convocado por artistas nacionais, milhares de pessoas foram às ruas. A manifestação foi a maior já realizada desde o início do movimento antigovernamental, mas diferente dos protestos anteriores, a marcha foi pacífica e a polícia não usou gás para dispersar os manifestantes.

Foto: AFP/Hector Retamal
Missão de Paz no Haiti
Na última terça-feira, 15 de outubro, a Organização das Nações Unidas (ONU) encerrou sua missão de paz e justiça no Haiti, que durou 15 anos. Soldados e agentes policiais haviam sido enviados à ilha em 2004, com o intuito de restaurar a ordem, após o país ser tomado por violência política e criminal, motivadas pela queda do então presidente Jean-Bertrand Aristide. Em 2017, com a situação mais pacífica no local, a ONU retirou sua tropa de militares e, desde então, o foco das operações havia sido no sistema jurídico. Com legado controverso, a missão é finalizada em plena crise política e social no país. .
Participação do Brasil
Com participação de destaque, o Brasil esteve envolvido ativamente na Missão de Paz no Haiti, liderando a operação desde a sua criação, em 2004. A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah) foi chefiada pelo general Augusto Heleno, que hoje é ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
Em 2017, a atuação brasileira na operação chegou ao fim, devido às mudanças realizadas pelo Conselho de Segurança da ONU, que optou por modificar o caráter do projeto, com a criação da Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (Minujusth), que sem contingente militar era voltado ao fortalecimento institucional e político do país.
Contexto histórico
Segundo a mestre e professora de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO) Daiane Aparecida Tonaco, o Haiti atualmente é um país que tenta superar a instabilidade política, econômica e social, instauradas desde a sua independência, em 1804. “Falar do Haiti é falar de uma história de luta. Luta contra as diversas formas de dominação externa e mazelas que resultam desse processo, além das catástrofes naturais”, salienta.
Daiane explica que a história haitiana é marcada, desde a colonização no século XVI, por disputa e conflito. “A população haitiana, no século XVIII, era formada por 95% de negros escravizados. Inspirados pela Revolução Americana, de 1776, e pela Revolução Francesa, de 1789, os haitianos realizaram a primeira revolução de negros escravos bem sucedida da história da humanidade, tornando-se a segunda República da América, na época, e o primeiro país dirigido por negros que romperam a sua condição de escravos”, explica a mestre.
Apesar do bem sucedido levante, o movimento durou apenas 10 anos, pois a França impôs ao governo haitiano o pagamento de uma indenização pela sua independência e as potências europeias impuseram um cerco marítimo à ilha isolando-a do resto do mundo. “Essa dívida, em termos atuais, equivale a dez vezes a renda atual do país, paga a partir de empréstimos com juros desumanos realizados por bancos franceses”, acrescenta Daiane.
A historiadora, professora e especialista em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania, Herta Camila Cordeiro Morato, explica que no início do século XX os Estados Unidos invadiram o país e impuseram a lógica imperialista por mais de 20 anos. O resultado foi a estruturação de uma sociedade totalmente dependente econômica e politicamente e com a presença de um exército submisso aos interesses estadunidense. Posteriormente os EUA apoiaram o regime ditatorial de François Duvalier. “As lutas vivenciadas pelos haitianos no decorrer deste século se apresentam como extensões, desdobramentos e implicações desse processo histórico permeado pela política imperialista, que na prática se revela nefasta à humanidade”, diz Herta.

Foto: AFP / Hector Retamal
Outro ponto importante levantado pela professora de História é quanto à cobertura mediana e de pouca abrangência feita pela mídia brasileira, diante à atual situação do Haiti. “Notícias sobre o Haiti não tem espaço na grande mídia, pois quando se fala em América Latina evoca-se com grande ênfase a Venezuela, com seu regime ditatorial e a intenção salvacionista do governo estadunidense. Essa boa intenção está intrinsecamente relacionada ao ouro negro que corre em solo venezuelano: o petróleo. Enquanto isso, o Haiti sangra, grita e padece de fome”, finaliza Herta.
Com informações de Brasil de Fato, G1, Prensalatina, Folha, Carta Maior, Gazeta do Povo, R7, Sputnik, Correio do Povo, UOL, Exame, Estado de Minas, O Globo e DW.