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Atualizado: 8 de ago. de 2020

Documentário


‘Narciso em Férias’, com direção de Renato Terra e Ricardo Calil, retrata a experiência do cantor Caetano Veloso na prisão após a deflagração do AI-5, em 1968


Caetano Veloso em cena do filme 'Narciso de Férias' - Foto: Reprodução/ Primeiro Plano



Marcus Vinícius Beck


“Vão ser necessários anos e anos para se entender o que se passou”, atestou o sociólogo Edgar Morin ao referir-se à geração que amava Godard, Ginsberg, Glauber, Gil e Caetano. De todos os intelectuais que escreveram no calor do momento, sentenciou o jornalista Zuenir Ventura em seu livro-reportagem “1968: O Ano Que Não Terminou”, apenas o francês estava certo. Já se passaram 50 e tantos anos, e 68 ainda continua uma obra em aberta – para citar uma expressão do filósofo Umberto Eco. Mas – seria o caso de fazer um adendo – pode-se romantizá-la à vontade, desde que não a veja como uma santidade na História.


Como se estivessem diante do perigo, 14 dias após a deflagração do AI-5, agentes à paisana retiraram de suas casas Caetano Veloso e Gilberto Gil, em São Paulo. Sem lhes darem explicações, a dupla foi levada para o Rio de Janeiro, onde foram parar numa solitária por uma semana e depois transferidos para celas. Os jornais, já submetidos à censura prévia a essa altura, acabaram sendo impedidos de falar sobre a prisão dos artistas. “Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte me disse logo que eu fui solto: 'Quando a gente é preso, é preso para sempre'. Acho que é assim mesmo”, afirma Caetano, em “Narciso de Férias”.


O filme, com direção de Renato Terra e Ricado Calil, os mesmos de “Uma Noite em 67” (2010), foi selecionado para participar do 77º Festival de Veneza, um dos mais importantes do mundo. A mostra acontece entre 2 e 12 de setembro deste ano. Será o primeiro em formato presencial desde que a OMS decretou estado de calamidade pública por causa da pandemia de coronavírus. Escrito e dirigido por Terra e Calil, o documentário foi realizado pela produtora Paula Lavigne, esposa de Caetano, e coproduzido por Walter Salles e João Moreira Salles, dois dos nomes mais importantes do cinema documental brasileiro.


Disco 'Transa' foi gravado por Caetano durante a ditadura civil e militar



“A beleza deste filme está na maneira como Caetano Veloso, o artista em questão, hoje com 77 anos, é capaz de nos levar de volta àquela cela e nos fazer partilhar da impotência do rapaz preso. A simplicidade da encenação - um homem sentado de pernas cruzadas diante de uma parede de concreto, nada mais - dá voz ao essencial, uma escolha ao mesmo tempo estética e moral. Diante da violência, qualquer excesso seria injustificado”, diz João. “Este é um filme sobre o Brasil de antes e talvez de amanhã. Os fantasmas continuam entre nós.”


No documentário, Caetano narra o período mais duro de sua vida e reflete sobre os 54 dias enclausurado no xadrez da repressão. O título do filme foi retirado do romance “Verdade Tropical”, do escritor norte-americano F. Scott Fiztgerald, e refere-se ao fato de o cantor ter ficado quase dois meses sem poder se olhar no espelho. "Eu tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido”, lembra, no longa, o autor de “Alegria, Alegria”.


Na prisão, o compositor recebeu a vista de sua então esposa Dedé, com um exemplar da revista Manchete. A publicação continha fotos inéditas da Terra vista do espaço, inspirando que o cantor criasse a música “Terra” dez anos depois. Da experiência no cárcere e com saudade dos entes queridos, Caetano compôs a canção “Irene”, em homenagem a risada da irmã mais nova. “Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui/ Eu não tenho nada, quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada”, escreveu o compositor. Em 1969, junto com Gilberto Gil, Caetano rumou para o exílio. De lá, fez o disco “Transa” (1973), com trechos em inglês.


Veneza


O roteirista Renato Terra diz que duas pessoas tiveram papel fundamental no processo de produção de “Narciso de Férias”: o coprodutor João Moreira Salles e a produtora Paula Lavigne. “Conheci o João há 12 anos e, por causa dele, convivi com Eduardo Coutinho. Cada decisão que tomei no projeto veio desse aprendizado com João e Coutinho. A Paula teve a iniciativa do filme e, desde o convite, apoiou todas as decisões que tomei, confiou, me deu confiança”, afirma o documentarista. “Narciso de Férias”, continua ele, respeita cada palavra, memória, gesto e silêncio de Caetano. “Agora, queremos mostrar isso para o mundo.”


Caetano canta 'Alegria, Alegria' em 1967 - Foto: Reprodução



Já o diretor Ricardo Calil afirma que se sente honrado por ter conseguido levar a trajetória de Caetano Veloso para o Festival de Veneza. “É um evento histórico que pode apontar como será o cinema nessa nova realidade. Para nós, faz todo sentido que a estreia seja lá”, relata o cineasta. Ele lembra ainda que “Narciso em Férias” tem a preocupação em mostrar como um foi um períodos mais sombrios da História do Brasil. “O filme que fala do passado do Brasil, por meio das memórias de Caetano Veloso sobre sua prisão na ditadura, mas também tem muito a dizer sobre o presente do país", explica o diretor e roteirista.


Paulo, o intelectual de “Terra em Transe”, interpretado por Jardel Filho, alfineta os militares com seus comentários mordazes. “Não acreditava em sonhos e mais nada. Apenas a carne me ardia e nela eu me encontrava”, diz o poeta e jornalista. Lançado em 1967, o clássico do cinema novo, de fato, explica o que sentiu o tropicalista Caetano Veloso durante aqueles dias de cárcere no calabouço da ditadura civil e militar. Caetano, assim como Glauber, é um diamante da cultura brasileira e seu legado, suas histórias e suas músicas precisam ser mantidas vivas na memória da música popular. “Narciso de Férias” tem para ser um alento.

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