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  • Foto do escritorJúlia Aguiar

Memória em risco

Atualizado: 29 de jul. de 2021


Cinema

Ida de Regina Duarte à Cinemateca Brasileira causa instabilidade e provoca debate sobre a memória do audiovisual no País

Cinema Francês do começo do século passado. Foto: Oakland Univ


As imagens em movimento podem parecer algo ‘comum’ nos dias atuais, mas a criação do cinema é reconhecida como marco na compreensão da realidade humana e social. No século XIX, ouvíamos e líamos sobre o mundo. No século XX, o cinema transportava os olhares atentos à tela para - querendo ou não - uma nova percepção daquilo que entendemos como vida, manifestação dos sonhos e dos sentimentos.


Os estudiosos do cinema teorizam e debatem constantemente sobre o poder do audiovisual na sociedade. Tiranos como o nazista Adolf Hitler, é bom lembrar, usaram a sétima arte para propagar a mensagem do Terceiro Reich, assim como grandes cineastas mudaram a concepção sobre o mundo a partir de seus filmes. Porém, como toda ferramenta de comunicação, o audiovisual sofre com a função de seu ofício.


Para que serve o cinema? O teórico de cinema psicanalítico Jean-Louis Baudry, no livro "A experiência do cinema", compilação organizada pelo pesquisador Ismail Xavier e publicada pela editora Graal, disserta que "o caráter técnico das máquinas óticas, diretamente relacionado à prática científica não serve para mascarar não só seu emprego nas produções ideológicas, mas também os efeitos ideológicos que elas mesmas são suscetíveis de provocar".


"Os historiadores contemporâneos não desprezam os filmes como fontes eloquentes de informação e análise" - Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Cinemateca Brasileira e professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP

Segundo Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Cinemateca Brasileira e professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP, as imagens em movimento têm o poder de reter o real e se tornam, mesmo que involuntariamente, registros de uma época. “Os historiadores contemporâneos não desprezam os filmes como fontes eloquentes de informação e análise. O cinema não é um mero registro passivo da realidade; é uma linguagem que reelabora o real", explica ao Jornal Metamorfose.


O cinema, ao contrário do jornalismo televisivo, retrata o tempo presente sem necessariamente ser fiel aos fatos. É a arte da história lúdica, pois revela à humanidade a linguagem das coisas mudas, do ritmo das multidões e a subjetividade dos objetos, tendo o poder de retratar e refletir o tempo, espaço e cultura de um povo. A capacidade da sétima arte em representar a História é o que transforma em essenciais instituições como a Cinemateca Brasileira, que tem o maior acervo da América Latina.


"Hoje, a própria realidade parece refletir ao cinema e não o contrário, vivemos um período tão conturbado onde as informações são distorcidas, narrativas são adulteradas, culturas são apropriadas e retratadas de maneira injusta e, até mesmo, não são retratadas, porque não tiveram a chance de participar de alguma produção genuinamente fiel a um recorte memorial da nossa cultura", afirma o cineasta, diretor criativo e mediador cultural, Jaicle Melo.


Cinemateca Brasileira

Foto: Caio Brito


Idealizada em 1946, pelo crítico e estudioso do cinema Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), a Cinemateca Brasileira contém o maior acervo de "imagens em movimento" da América Latina, com mais de 200 mil títulos nacionais e estrangeiros. Além de documentos importantes para a história do audiovisual nacional, como os certificados de censura - tanto no Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, como na Ditadura Civil-Militar (1964-1985), dos gorilas fardados.


Seu principal objetivo é promover a preservação do acervo, digitalizar as obras e, principalmente, difundi-las para a população. No artigo “Pequeno Cinema Antigo”, Paulo Emílio, que também idealizou o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), discorria sobre a problemática da memória cinematográfica no século 20. “O descaso pelo que existiu explica não só o abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a impossibilidade de se criar uma cinemateca”, escreveu.


O trabalho de preservação cinematográfico é um dos pilares fundamentais na manutenção da memória cinematográfica de um país, o processo de manter um acervo é complexo e delicado, necessitando de profissionais capazes de cumprir a função. É o que explica Pedro Maciel Guimarães, professor no Departamento de Cinema da Unicamp e doutor em cinema e audiovisual pela Paris 3 - Sorbonne Nouvelle: “é preciso que as pessoas entendam que colocar a Cinemateca nas mãos de uma pessoa que é inexperiente nesse meio de conservação, é colocar em perigo a memória audiovisual do país”, avalia o professor.


Situada na cidade de São Paulo, a Cinemateca possui vocação nacional. Segundo o professor e ex-diretor da instituição, Carlos Augusto Calil, "ela conserva a imagem animada do país desde o início do século, as chanchadas tão populares, as obras do Cinema Novo, de prestígio internacional, a memória da pioneira TV Tupi etc. Ela é a maior, mas não a única, referência no campo histórico das imagens entre nós. E é reconhecida como a maior instituição do gênero na América do Sul", afirma em entrevista ao Jornal Metamorfose.


"É preciso que as pessoas entendam que colocar a Cinemateca nas mãos de uma pessoa que é inexperiente nesse meio de conservação, é colocar em perigo a memória audiovisual do país" - Pedro Maciel, professor da Unicamp e doutor em cinema e audiovisual pela Paris 3 - Sorbonne Nouvelle

A Cinemateca Brasileira, de fato, sofre com o descaso público e a falta de investimentos há anos. Desde 2013, a entidade passa por problemas administrativos e estruturais derivados de crises políticas. O ministério da cultura nunca soube realmente investir em políticas públicas voltadas à manutenção de acervos e museus, e toda a classe artística sofre com o descaso público.


Com a posse de Jair Bolsonaro (sem partido) e seus aspones para assuntos artísticos, a cultura passou a sofrer com censuras, falta de investimos, fim de editais e sucateamento de órgãos que deveriam primar pela valorização de nossa identidade. Atriz que interpretou textos de Dias Gomes, um dos comunistas do doutor Roberto (como o mandatário do plim-pim era chamado pelos seus amigos militares), Regina não é uma otimista irremediável, muito menos uma alienada: é uma ‘artista’ que escolheu aliar-se aos homens de coturno preto e farda verde-oliva. A ida de Regina levanta a pulga atrás da orelha. E como.

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