- Juliana Camargo
Relacionamento abusivo: pesquisa aponta que 42% dos casos de violência contra mulher aconteceram no
Patriarcado
No mês em que a Lei Maria da Penha completa 13 anos, o Jornal Metamorfose ouviu depoimentos de mulheres que passaram por relacionamentos abusivos. Para evitar exposição das personagens, seus nomes foram deixados em sigilo

Protesto 8 de março pela vida das mulheres, São Paulo, 2019. Foto: Júlia Lee
“O amor precisa machucar? E se machucar, que tipo de amor é esse?”. Entre um gole e outro de café, a pedagoga de 55 anos, E.B., se questionava enquanto relembrava seus últimos relacionamentos, ambos abusivos. O primeiro começou quando ela ainda tinha 16 anos de idade. Após dois anos de namoro, resolveram se casar. “No início ele não dava indícios de ser abusivo, ele me enchia de presentes. Mas, depois do casamento eu não conseguia ver nele a pessoa com quem eu namorei”, declara.
Ela conta que por causa do marido, parou de estudar e se afastou da família e dos amigos. “Eu não podia sair de casa, nem trabalhar fora e também não pude aprender a dirigir. Mas enquanto isso, ele sim, terminou o segundo grau e saía sem mim. Ele podia tudo e eu nada”. Depois de mais um gole no café, ela complementa: “Se eu tentasse fazer o mesmo, daí ele ficava nervoso, quebrava as coisas e me ameaçava. Foi um sufoco a vida inteira, era muita humilhação”.
Somente após vinte anos os abusos cessaram, quando E.B. pediu divórcio. “Depois que meus filhos cresceram, decidi dar um basta nisso tudo. Foi difícil, ele não queria, mas consegui”, relata. Questionada sobre o motivo de não ter se separado antes, ela aponta a falta de apoio da família. “Para meus pais, ter uma filha divorciada era muita humilhação. Naquela época, uma mulher que se separasse do marido não era bem vista. Então, na verdade toda a minha família sabia da minha condição, mas preferiam deixar tudo como estava. Não tinha apoio, eu não tinha para onde correr”, afirma.
Depois de seis anos solteira, E.B. teve seu segundo casamento, em que também sofreu abusos. “No dia que a gente entrou no cartório e assumiu o compromisso, ele mudou completamente o palavreado comigo, passou a ter o mesmo comportamento que o outro”. Ela relata que a contragosto do parceiro, voltou a estudar e em seguida pediu divórcio. “Depois que me formei em pedagogia, decidi colocar um fim nesse relacionamento, que só me trouxe coisas ruins”, relembra.
Com relatos parecidos, a salgadeira D.A., de 52 anos também passou por relacionamentos abusivos. Após três anos de casamento ela começou a receber ofensas de seu parceiro e logo em seguida, ameaças. “Ele até tentou me matar. Meu maior receio era que ele fizesse alguma coisa com meus filhos”. Ela relata que na época chegou a ir à delegacia, mas não foi acolhida. “O delegado sugeriu que eu me mudasse para outra cidade. Mas como eu poderia deixar minha vida para trás?”, declara.
E.B. e D.A. não são casos isolados. Segundo pesquisa do Datafolha feita em fevereiro, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no último ano 42% dos casos de violência contra mulher aconteceram em casa e cerca de 76,4% das agressões foram praticadas por pessoas próximas à vítima. O levantamento ainda aponta que 1,6 milhão de mulheres foram espancadas e 2 milhões passaram por algum tipo de assédio no Brasil.
Para a psicóloga Marisa Azevedo, esses padrões comportamentais de violência contra a mulher são frutos da cultura machista arraigada na sociedade. “Muitos dos abusos voltados para pessoa do gênero feminino, são permitidos socialmente. Na nossa sociedade arcaica brasileira, as mulheres são ensinadas a esconder seu corpo, a evitar certas situações para se proteger. Os homens em contrapartida, na maioria das vezes, não são ensinados a respeitar”, explica.
Foto: Júlia Lee

Segundo Azevedo, um relacionamento abusivo tem origem também na romantização social do sentimento de posse e ciúmes. A psicóloga ainda aponta que os abusos são baseados na privação de liberdade da vítima. “Um relacionamento abusivo é quando uma das partes limita, violenta, manipula e coage a outra parte, fazendo uso de recursos financeiros, físicos e/ou psicológicos. Então, ela vai querer controlar o celular da parceira, limitar para onde a pessoa pode ir, obrigar a ter relações sexuais que só trazem benefício e prazer ao agressor, controlar dinheiro, entre outros”, afirma.
De acordo com a psicóloga, um relacionamento abusivo pode desencadear depressão, ansiedade e baixa autoestima. Segundo ela, em muitos casos, mesmo após o término da relação, a vítima pode desenvolver comportamentos prejudiciais nos relacionamentos futuros. “Com um histórico de abusos, a vítima pode passar a se posicionar de forma passiva, insegura ou até mesmo abusiva também. O abuso então, inevitavelmente deixa marcas na vítima”.
As marcas deixadas em E.B. e D.A. ainda persistem. Tanto a salgadeira, quanto a pedagoga não conseguiram se relacionar novamente. “Eu entrei em depressão e hoje, quando alguém se interessa por mim, eu já me bloqueio. Os dois me diziam que ninguém ia me querer, que eu já estava velha. Acho que acabei internalizando isso. Tenho medo de viver tudo de novo e nisso, já tem três anos que não me relaciono com ninguém”, desabafa E.B..
Para D.A., o amor não pode ser algo que aprisione. “Quando eu vejo que a pessoa não me deixa ser livre, eu já até excluo do zap. Coisa boa não vai vir daí”. Ela ainda frisa, que a culpa não é da vítima. “Nós não somos propriedades deles. O problema é algo de dentro deles, é insegurança deles, não é culpa da mulher”.
De acordo com a advogada e ativista social, Michely Coutinho, é importante que a vítima saiba que não está sozinha. Segundo ela, apesar de existirem falhas nas políticas de apoio às mulheres que sofrem violência, ainda assim, há medidas protetivas e de punição ao agressor. “É importante que a população saiba que o Judiciário e demais órgãos da Justiça existem para auxiliar as mulheres, como por exemplo, as defensorias públicas, que podem acompanhar as vítimas que não tenham condições econômicas. Há toda uma rede de atendimento estatal e do Terceiro Setor para acolher a vítima, e inclusive empoderá-la para que ela possa realizar a denúncia”, explica.
Os principais canais para denúncias, são o disque 180, da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência e o disque 190, da polícia. No caso das capitais e cidades em que haja uma DEAM - Delegacia da Mulher, como é o caso de Goiânia, a denúncia pode ser realizada presencialmente. “O importante é que a mulher se sinta segura e acolhida para realizar a denúncia, e tenha garantia de sua integridade”, destaca a advogada.
Foto: Júlia Lee

Coutinho ainda explica que a lei prevê dois tipos de medidas protetivas de urgência à vítima: as que obrigam o agressor a não praticar determinadas condutas e as medidas que são direcionadas à mulher e seus filhos, visando protegê-los. “Em alteração recente da Lei Maria da Penha, dada Lei 13.641/2018, criou-se o primeiro tipo penal incriminador constante nesse diploma protetivo da mulher. Pelo novo artigo 24-A, pune-se com pena de detenção de três meses a dois anos, a conduta de descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas em lei. Caso haja descumprimento das medidas, o juiz pode decretar a prisão preventiva do agressor”, afirma.
De acordo com a advogada, é preciso que a sociedade se mobilize para a erradicação da violência contra mulher. “É importante que estejamos sempre alertas à aplicação e aperfeiçoamento da Lei Maria da Penha”. Para ela, é imprescindível também que haja uma transformação na sociedade. “A mudança cultural é fundamental. É preciso que toda a sociedade assuma como prioridade o fim da violência contra a mulher e maior equidade de gênero, como condição indispensável para o próprio desenvolvimento econômico e social do país”, declara