- Rosângela Aguiar
Respeito e Dignidade: sonhos de quem mora nas ruas do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Sob os Arcos da Lapa, ponto turístico da Cidade Maravilhosa, muitos sentem a dor do preconceito em especial, da família que os expulsou, e invisibilidade perante a sociedade

Kauane e Hilary moram na rua por se assumirem trans. Foto: Rosângela Aguiar
Já dizia o músico Herivelto Martins, “A Lapa, é o ponto maior do mapa Do Distrito Federal. Salve a Lapa”. Salve a Lapa que abriga a todes, sem distinção de cor, sexo, orientação sexual, onde vive uma grande família que se ajuda, para onde vão os esquecidos, sem voz, os chamados “invisíveis” da sociedade.
Mas eles não só querem pão e uma moeda para completar o almoço ou a janta. “Falo por todos nós aqui. Queremos acima de tudo, respeito, porque não nos podem dar isso?”, questiona, Kauane, nome social escolhido por uma transexual simpática e com muito conhecimento para passar para quem se dispuser a ouvir. Na família é conhecida como Edilson M. Xavier, hoje com 39 anos. Kauane tem personalidade e muita certeza do que deseja: Ser sem quem é.
Desde 1950, quando Herivelto Martins compôs o samba, a Lapa permanece acordada, mas diferente daquela época, milhares de pessoas fazem da Lapa, dos Arcos da Lapa, o seu lar. E não é por falta de opção, como muitos imaginam. Por imposição da vida, pelo preconceito, pela homofobia, pela transfobia, e que em sua maioria, começa em casa, o que leva milhares para as ruas da cidade. Hoje mais de 10,5% da população carioca faz das ruas sua casa, uma boa parte é embaixo ou próximo aos maiores pontos turísticos da Cidade Maravilhosa. E o que eles querem? Serem ouvidos. Respeito, acima de tudo.
Hoje de 6 milhões 788 mil moradores da Cidade Maravilhosa, 7.772 mil vivem nas ruas, uma parte tendo como sombra e paisagem os Arcos do Lapa, ao som do bondinho passando eventualmente e observados pelo turistas. Mas lá embaixo a realidade é dura e dolorosa. Sem comida, sem água, sem poder tomar um banho decente, sob olhar julgador. Eles querem ser pessoas que tem um desejo: serem respeitados por quem são.
Renegado
Nascido Edilson M. Xavier, hoje com 39 anos, nunca se reconheceu no corpo que nasceu. Tinha alma e jeito de mulher e por ser filho entre sete outros, sendo cinco do sexo masculino e duas do feminino, se identificava com as duas. Foi criado pela avó, falecida há dois anos. Os irmãos o renegaram, tiraram o que lhe é de direito. Kauanei assumiu seu nome social e foi morar na rua. A única escolha que restou em um momento conturbado. Hoje, sob a sombra dos Arcos da Lapa, brada: “Desejamos Respeito”. Um grito que dói na alma de quem tem o mínimo de sensibilidade para perceber que “esses invisíveis” não precisam ser o que são atualmente.
Nome social, a diferença

Companheira de vida, de luta, está Hilary O. Demochanpt, nome do qual se orgulha, uma mistura de inglês com francês. Nome forte que mostra a personalidade de quem não veio ao mundo a passeio, mas para lutar pelas diferenças e ser aceita como é, nem mais, nem menos. E agradece quem veio antes e lutou pelo nome social e por sua aceitação pela sociedade. Uma luta que vai levar para toda a vida. E espera que o seu ato de ter escolhido o nome social incentive outras a fazer o mesmo, para ter dignidade e ter reconhecimento como pessoa.
O nome social para Hilary representa deixar o seu gênero original pra trás, e passar a ser um cidadão/cidadã como qualquer outro, como eu e você. “De uma posição pela metade, para inteiro. O trocar de nome é polêmico, mas importante. Para mim foi ser o corpo de homem e ter uma posição, um jeito, uma mente de mulher”, diz Hilary, que sofreu com a homofobia em casa.
E entre elas e tantos outros que hoje moram nas ruas por necessidade, existem sonhos, desejos de uma vida mais digna, melhor, onde ser aceito pelo que simplesmente é, é muito mais do que dinheiro ou posição social.
Depressão Cívica
Durante a pandemia Kauane viveu do auxilio emergencial do Governo Federal e agora conta o auxilio Brasil e eu pergunto: Mudou alguma coisa? “É o que me sustenta, mas parece um dinheiro sujo”, diz Kauane que demonstra revolta diante do atual governo.
“O que não acaba é a violência desse governo”, relata Kauani, que, como muitos brasileires sofrem hoje da chamada depressão cívica. Uma dor causada pela ausência do Estado que deveria cuidar das pessoas e que, ao mesmo tempo, fala em extermínio, promove insegurança, em especial para quem vive nas comunidades, nas ruas e que não fazem parte da “tradicional família brasileira”, esta que expulsa de casa seus filhos e filhas e lhes empurram para as ruas por não conseguirem enxergar a pessoa e o(a) filho (a).
E é neste cenário, em que todes estão cansados, exaustos, a voz de Kauane brada: Temos que mudar o que está aí. Posso falar? Não voto no Bolsonaro, ele é ruim. Lula nunca deixou o Brasil a deriva”.
Entre os quase 7 mil e 800 mil pessoas que vivem nas ruas da Cidade Maravilhosa, o sonho é o mesmo. Moradia digna, trabalho, salário, e acima de tudo, reconhecimento por quem são. Nem todos são viciados, drogados. São seres humanos expulsos de casa por suas escolhas de vida ou porque simplesmente não conseguem pagar o aluguel e ter um emprego digno, ou porque cansaram das agressões diárias dos parentes. E entre todes, uma certeza: é preciso mudar o Brasil. Como disse Kauani: Do jeito que está, não dá. Vamos tirar esse cara de lá!