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  • Lays Vieira

Sangue latino e periférico: o que significa estar no “Sul global” na geopolítica mundial

América Latina

É preciso combater o “complexo de vira-lata” do governo atual e valorizar nosso continente


Marcha da resistência, em janeiro de 2019, em Goiânia. Foto: Júlia Lee


Apesar da roupagem nacionalista, o atual governo de Jair Bolsonaro é entreguista e exalta os Estados Unidos como esse fosse um “paraíso”. Um lugar perfeito, sem pobreza e desigualdade, ideário da liberdade, o ápice de onde qualquer país pode e deveria chegar. Esquece-se, ou melhor, aceita-se de bom grado esse governo o fato de que, historicamente, os governos norte-americanos sempre enxergaram a América Latina como seu quintal. Exemplo claro disso é a atuação e influência exercida pelos Estados Unidos no nosso continente nos anos de Guerra Fria, desde aspectos militares até os ideológicos. E não é muito diferente hoje em dia.


Infelizmente não é só o governo que tem esse complexo de vira-lata. Muitos brasileiros sonhem em um dia conhecer a Disney ou as luxuosas avenidas de Nova Iorque. Não conhecem seus vizinhos, mas sonham o “sonho americano”. Muitos se iludem em irem para os Estados Unidos “ter uma vida melhor”, e para tal se submetem a viagens perigosas e ilegais. E muitos, quando chegam, acabam tendo que trabalhar em subempregos, com moradias precárias, se escondendo das autoridades, em um país estrangeiro e com uma língua que não é a sua.


Obvio que o Brasil não está bom para ninguém, mas combater esse complexo de vira-lata, já que o governo não se interessa em faze-lo, pode ajudar muita gente a entender geopolíticas e econômicas que perpassam, em especial, as atitudes dos bozomerdas. É comum ouvirmos na tv e de especialistas termos como “Norte e Sul global”, “primeiro e terceiro mundo”, “países desenvolvidos e subdesenvolvidos (ou em desenvolvimento) ”, mas afinal, porque e para que serve essas nomenclaturas? Elas surgiram do nada? Não, muito pelo contrário...elas surgiram com um objetivo bem especifico.


“Sul global” é um termo guarda-chuva para se referir a regiões da América Latina, África, Ásia e Oceania. Outros termos para tratar dessas regiões que estão fora da Europa são “periferia” ou “Terceiro mundo”. Mas, o uso desses termos também marca a ênfase em uma geopolítica das relações de poder. Segundo a cintista social australiana Raewyn Connell, professora da Faculdade de Educação e Serviço Social da Universidade de Sydney, desde seus primórdios as Ciências Socais desenvolveram conceitos para descrever as diferenças, a exemplo de Auguste Comte, Herbert Spencer e Emile Durkheim. As discussões nessa área de conhecimento sobre o progresso foram sendo feitas com base na formulação de parâmetros para delinear distinções entre sociedades e instituições “avançadas” e “primitivas”.


Mas, a conotação colonialista do termo “sul global” foi revivida ainda entre as décadas de 1950 e 1960, com base em um entendimento de desenvolvimento econômico. Segundo Connell, o economista argentino Raúl Prebisch foi o responsável por popularizar a distinção entre “centro” e “periferia”. Junto a outros críticos da economia ortodoxa, Prebisch analisou o subdesenvolvimento e as lutas e disputas pela reforma do comercio mundial, em especial após a Segunda Guerra. A professorra aponta que países em desenvolvimento começaram a articular a ideia de um sul global cujos interesses conflitavam com os dos poderes industrializados, modificando assim as divisões comuns até então por conta da Guerra Fria. Com isso, Immanuel Wallerstein desenvolve a abordagem conhecida como “sistema mundo”, fazendo dos conceitos de “centro” e “periferia” uma alternativa frente ao binômio moderno/tradicional.


Com o fim da Guerra Fria, os termos e as dualidades entre “Norte global” e “Sul global” se popularizaram no mundo acadêmico, fornecendo uma alternativa a outro conceito já popularizado, “globalização”, contestando a crença deste último em um processo de crescimento e desenvolvimento (principalmente econômico e tecnológico) homogêneo entre as diversas culturas e sociedades. Mas, a ideia de um norte global poderoso e um sul global resistente veio só com a revolta zapatista no México, iniciada em 1994, o chamado “Renascimento Africano” e o Fórum Social Mundial, ocorrido no Brasil em 2001. Além disso, mudanças mais recentes na economia global, principalmente no que tange o crescimento do mercado financeiro de capitais, tem reforçado e deixado evidente as vantagens econômicas dos antigos impérios coloniais, ou seja, países europeus e, posteriormente, os Estados Unidos.


Contudo, é preciso atenção. Essa ordem mundial é muito mais complexa do que parece. O casal Jean e John Camaroff, ambos professores de Estudos Africanos e Afro-Americanos e de Antropologia na Universidade de Harvard, defendem que tal disposição é essencialmente relacional, ela só existe mediante as antinomias entre norte e sul (assim como a ideia de Ocidente só existe por que foi delimitada a ideia de um Oriente). Tais antinomias carregam em seu interior, como já apontado, resquícios de um passado cristalizado sob o contraste entre centralidade e marginalidade, entre a modernidade capitalista e sua ausência, entre império e colônia. Mas, o que define de fato esse chamado “sul global” hoje vai muito além disso. Essas nomenclaturas descrevem categorias políticas. Assim, é importante destacar que essas linhas que dividem a atual ordem mundial não possuem traçados estáveis. Mas, possuem uma forte articulação estrutural de suas economias.


De acordo com os Camaroffs, a muito do norte no sul e muito do sul no norte, não só com a presença de empresas multinacionais. Economias e mundos culturais dinâmicos coexistem com a pobreza, a violência e a exclusão. Fica claro que em vários dos contextos do sul global as antinomias anteriormente citadas tomam formas que se concretizam em duras realidades políticas e econômicas. Como exemplos, podemos citar a distribuição de poder e influência em instituições internacionais, tais como a ONU, o Banco Mundial e o G8; o peso desses estados-nação na deliberação e tomada de decisões, cortes e jurisprudências internacionais; além da aritmética fiscal das instituições que avaliam os riscos referentes a créditos (o nível de probabilidade de um país X dar ou não calote em uma situação de empréstimo, por exemplo) dos diferentes países. Porém, a divisão entre norte e sul é essencial para a proporia existência desse sistema. As exclusões causadas pela modernidade capitalista são o resultado inevitável do seu funcionamento interno.


A modernidade ocidental se caracteriza como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação social. Mas, esta é a distinção visível. Há uma outra distinção, invisível, que coexiste com a primeira e com a qual se funde: a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. Para citar um exemplo dessa forma de pensamento no campo do conhecimento, temos o monopólio da validade universal da verdade científica. Onde sua visibilidade se assenta na invisibilidade de outras formas de conhecimento, como o conhecimento indígena (entendidos como não relevantes).


Ou seja, a injustiça social global se mostra intimamente ligada à injustiça cognitiva global. Assim, a luta pela justiça social global também deve ser uma luta pela justiça cognitiva global e, para isso, é necessária uma nova forma de pensamento, um pensamento pós-colonial e descolonial. E, talvez o mais importante, que também se converta em práxis e dê fim a esse complexo de vira-lata que atingem vários dos nossos governos, governos que “lambem as botas” do colonizador sonhando em algum dia fazer parte desse clubinho como um igual...doce ilusão!

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