Marcus Vinícius Beck
Sem luz, sem alma, sem cor
Atualizado: 12 de abr. de 2021
Botequim Literário

Auto-retrato do fatídico dia 31 de março de 2021, reivindicado pelos milicos como "marco histórico da democracia brasileira". Foto: J.Lee
Foi à moda “BR-716”, último filme do cineasta Domingos de Oliveira: estávamos trancafiados em casa. Se a patota domingueana assistia o golpe se desenrolar pela televisão, hoje a situação mudou um pouco. Ou, pra ser franco, nem sequer mudou.
A energia elétrica desligou às 15h37 do dia 31 de março de 2021. “Vamos passar o dia em que o golpe civil-militar de 64 instaurou uma sanguinária ditadura no Brasil no escuro”, pontuou Maia, minha companheira de sonhos (in) tranquilos.
É, não teve jeito: passamos. Não sem antes, todavia, ela pegar sua máquina fotográfica e registrar com seus olhos poéticos os momentos de dois jovens jornalistas desprovidos de grana, com medo da próxima jogada dos fardados no tabuleiro da política.
Desmemoriados que somos, nunca é demais lembrar que a data em questão não deve ser comemorada, e sim denunciada por atirar o país num precipício de tortura e assassinato. Em 64, ao contrário que costumam vomitar milicos de pijama ou não, foi inaugurada uma época de perseguições, violações de direitos humanos e suplícios existenciais. Pais não puderam enterrarem os filhos. Nem filhos enterrarem os pais. Toda uma geração fora dizimada nos calabouços da repressão. O legado da ditadura?
Bom, você pode vê-lo em figuras como Eduardo Pazuello e Augusto Heleno. São alunos aplicados, formados pela bipolaridade da Guerra Frisa, a tal paranoia do comunismo, ah como essa turma da foice e do martelo tira o sono de tiranos por aí: acho que o velho Marx jamais poderia imaginar que seus escritos sobre o capitalismo mexeriam com a cabeça daqueles que adoram bater no lombo dos desassistidos.
Após essa breve digressão, convém ressaltar que nosso temor era de fato sincero. Arthur Lira, aquele mesmo que chegou à presidência da Câmara dos Deputados com o apoio de Bolsonaro, abriu o bico e disparou críticas aos tresloucados inquilinos do Ministério da Saúde e Itamaraty. Medroso que é, o ex-capitão trocou seis ministros: até o comandante do exército, Edson Pujol, foi rifado do cargo. Parabéns, Bolsonaro.
Com uma tacada só, conseguiu criar a maior crise militar desde 1977, quando o ditador Ernesto Geisel mandou o então comandante das Forças Armadas, Silvio Frota, para a rua. Frota, da chamada ala dura do regime, não queria saber desse negócio de abertura lenta, gradual e irrestrita. Em seu raciocínio limitado, o que valia mesmo era a porrada. Mais ou menos como é com o ex-capitão, guardadas – claro – as devidas proporções.
Estacionamos, agora, o bonde da história em 2021: Braga Netto, um amante dos anos de chumbo, emitiu uma nota na qual diz que, em 64, os brasileiros sacaram a urgência do momento e se movimentaram nas ruas, com apoio da imprensa, lideranças políticas, igrejas e setores do empresariado brazuca.
Ok, até aí: isso tudo aconteceu. Mas, ora bolas, faço um adendo aqui: Braga Netto esqueceu-se de falar que o regime militar implantou a carnificina como método de governo. Deu no que deu. Quanto à desonestidade histórica do general borra botas de Bolsonaro, nada de novo sob o sol.
Ser fiel aos fatos, como a gente bem sabe, não é das melhores virtudes dos fardados. Assim como também se posicionar do lado certo da história não é. Os milicos protagonizaram o terror de 1964 a 1985, e hoje conquistaram êxito em fazer aquela faxina social da qual Bolsonaro falara nos anos 1990. “É preciso matar uns 30 mil”.
Sobre as fotos feitas pela minha amiga Maia, elas dispensam maiores apresentações: são poéticas como um verso de Fernando Pessoa e leves como uma música de Django Reinhardt tocada no último volume. E, sim, ficamos com sem energia todo o dia 31 de março, mas não foi por uma trama golpista de Jair Bolsonaro. Foi, vejam vocês, por um excesso de pagamento.
Mas podem ficar tranquilos: o problema já foi resolvido.