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  • Foto do escritorMarcus Vinícius Beck

Sem-tetos como estrelas

Cinema

Documentário do cineasta Ricardo Calil reconstrói história de cinema de rua que serviu de abrigo para 2 mil sem-tetos de 17 países


Filme retrata ocupação artística de um cinema de rua na cidade de São Paulo - Foto: Globo Filmes/ Divulgação


O filme “Noites de Circo” (1953) esteve em cartaz no cinema paulistano de rua Marrocos, mas no documentário “Cine Marrocos”, dirigido por Ricardo Calil, a finalidade da obra é outra: o clássico longa-metragem de Ingmar Bergman foi reencenado por moradores sem-teto, num lampejo criativo que encontra paralelo em “Jogo de Cena”, do mestre do brasileiro Eduardo Coutinho. Não poderia ser melhor.


A história do Cine Marrocos, localizado no centro de São Paulo, é de fato gloriosa: em 1954, chegou a ser considerado o mais luxuoso cinema da América Latina. Foi responsável ainda por sediar o primeiro festival internacional do Brasil, que contou com a participação de astros de Hollywood e mestres celebrados do cinema. No evento, clássicos como “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, “Júlio César”, de Joseph L. Mankiewicz, e “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini, foram exibidos.


Em 2015, quando a equipe de “Cine Marrocos” pisou pela primeira vez no tradicional cinema de rua, o espaço já havia disponibilizado suas telas para a exibição de filmes pornográficos (anos 1970), fechado suas portas (década de 1990) e se tornado há pouco uma ocupação de 2 mil sem-tetos de 17 países. Os desabrigados dormiam em quartos provisórios nos corredores do Marrocos e do prédio, além de conviverem com ameaças de verem suas casas perdidas pela reintegração de posse da prefeitura paulistana.


“Tem dois gestos políticos. Primeiro, exibir filmes para os moradores da ocupação. O Marrocos não poderia ficar fechado. O outro aspecto político é convidar as pessoas para ver esses clássicos que foram exibidos no festival internacional do Brasil e mostrar todo um potencial que está escondido, do vamos dar a melhor vitrine – a tela do cinema – mais os filmes antes destinados para a elite”, explica ao Jornal Metamorfose o cineasta Ricardo Calil, codiretor também do documentário “Narciso em Férias”.


A grande beleza foi Calil ter transformado pessoas invisíveis pela sociedade em estrelas, com algumas demonstrando surpreendente vocação às artes cênicas. Na oficina, reencenaram cenas famosas dos clássicos e acrescentaram sobre os personagens suas memórias, vivências, histórias e talentos, reinventando papéis eternizados por Gina Lollobrigida, Vittorio de Sica, Gloria Swanson, Harriett Anderson e por aí vai.


Em um dos momentos mais marcantes do filme, o cantor camaronês Yamaia Mohamed adaptou o monólogo shakesperiano de Marco Antônio em “Júlio César, papel originalmente interpretado pelo ator Marlon Brando no filme de mesmo nome, num rap. Noutro, o jornalista congolês Junior Panda, perseguido pela ditadura de seu país, encenou em sua língua natal (Lingala, idioma falado no Congo) o personagem de Jea Gabin, em “A Grande Ilusão”. Ao passo que a brasileira Volusia Gama, ex-bailarina, virou Norma Desmond em “O Crepúsculo dos Deuses”. É de se emocionar.


Trailer de 'Cine Marrocos'


“Cine Marrocos”, vencedor da edição de 2019 do festival É Tudo Verdade, estreita os universos que até então soam ao espectador distintos entre si, como passado e presente, documentário e ficção, ostentação e precariedade. Sem contar, claro, ao pincelar na tela grande a luta por moraria. Está aos olhos do público o preconceito contra os sem-tetos e o fim dos cinemas de rua: Ricardo Calil faz uma declaração de amor ao audiovisual, mas também questiona padrões sociais intrínsecos à discriminação.


“O cinema deve ser para todos – tanto para a elite que frequentou o Cine Marrocos no festival de 1954, quando para os moradores da ocupação. As filmagens foram uma maneira de reocupar o edifício não apenas fisicamente, mas também simbolicamente”, atesta o diretor. A captação de imagens, diz o Calil, foi realizada em pouco tempo, recursos escassos e a iminência de reintegração de posse. “A equipe trabalhava em cooperativa, em forma de guerrilha. E os moradores foram as estrelas”, atesta.


Tudo isso, é importante ressaltar, temperado com uma montagem – assinada por Jordana Berg, que trabalhara com Eduardo Coutinho – que deixa evidente as semelhanças de Calil com o mestre do documentário brasileiro. E permite um diálogo fílmico com talvez uma das produções mais marcantes do cinema brasileiro da última década, o longa-metragem “Era Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé.


Ainda sem previsão de quando vai chegar ao streaming - uma pena! -, “Cine Marrocos” está em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Campinas e Salvador. O filme é, antes de mais nada, uma carta de amor ao cinema e toda a possibilidade de sonho que ele permite àqueles que são sufocados por uma existência que lhes amordaçam.


Repórter foi convidado pelo diretor a assistir ao filme na cabine de imprensa online



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