Victor Hidalgo
Sertãopunk - ficção especulativa nordestina
Atualizado: 23 de dez. de 2022
Cultura
Entrevista com a autora G.G Diniz sobre a criação do Sertãopunk

Quando pensamos em gêneros de fantasia, o que vem em mente são os clássicos como “Senhor dos Anéis" de J. R.R Tolkien ou então “Fundação” de Isaac Asimov. Mas e quando pensamos em literatura nacional? Existe algum tipo de mundo com nossas características tão únicas para explorarmos? A resposta é sim. Conheçam o sertãopunk, gênero criado pelos autores G.G Diniz, Alan de Sá e Alec Silva, que mistura a cultura nordestina com um futuro fantástico.
E para conhecer esse gênero melhor, conversamos com uma de suas criadoras. A autora fortalezense de 24 anos G.G Diniz, dos livros “Morte Matada” e “O sertão não virou mar”. Diniz escreve desde os seus 17 anos, e seu amor por ficção e fantasia que a colocaram no caminho de escritora.
De acordo com a autora G.G Diniz, sertãopunk remete a outros subgêneros punk como Cyberpunk e steampunk. O sufixo punk aponta que é uma história que vai abordar algum tipo de sistema corrupto. Ou seja, que vai existir algum tipo de crítica ali, mostrando um sistema que não está funcionando da devida maneira, contando as histórias das pessoas que são prejudicadas por aquele sistema. De forma mais abrangente, o punk também significa que aquela história vai seguir uma determinada estética. Cyberpunk e steampunk são dois subgêneros que possuem uma estética muito proeminente.
Uma das maiores obras do Cyberpunk já produzidas é “Blade Runner”, que influencia até hoje não apenas a literatura, mas o cinema e os jogos, com o seu neon e futuro distópico urbanizado. Já o Steampunk é uma mistura de Inglaterra vitoriana com revolução industrial, como a obra do animador Hayao Myazaki “O Castelo no Céu"
“Lendo clássicos de ficção científica, acabei expandindo para outras coisas como fantasia e horror. E como leitora, me apaixonei por esse universo. Como escritora, eu pensei “não vou sair daqui” vou escrever só ficção especulativa. A partir daí, eu comecei a entrar no meio como uma autora independente. O cenário de ficção especulativa no Brasil se concentra muito no sudeste, no eixo Rio-São Paulo, e é um meio que se concentra muito na produção de pessoas brancas. Me parecia impossível entrar nesse mundo de outra forma, então eu comecei como autora independente, publicando contos na Amazon, produzindo conteúdo literário no meu canal e no meu site, e a bola foi rolando.” Diz G.G Diniz ao Jornal Metamorfose.
Mas e o sertãopunk? Do que se trata?
O subgênero tem esse nome por duas razões. De acordo com a autora e uma das criadoras do mesmo, G.G Diniz diz que “Ele busca trazer esse elemento de crítica de realmente abordar sistemas corruptos e a questão da estética, pegar uma estética nordestina. O nome é uma brincadeira, quem pensa em nordeste pensa em sertão, aí pensamos que sertãopunk seria uma ótima ideia de um movimento de ficção futurista que se passa no nordeste, que vai abordar a questão da crítica a sistemas corruptos, que existem no nordeste, e também trazer a questão da estética.”
Ainda segundo a autora, para que uma história seja considerada sertãopunk, ela precisa ser uma história de ficção futurista que se passa no nordeste. E para isso, o gênero conta com três referências: o solarpunk, realismo mágico e o afrofuturismo.
“Solarpunk é um subgênero que tem a questão de criticar o sistema mostrando o que poderia ser se esse sistema não existisse. É um subgênero punk bem otimista, e que ele é focado na questão do desenvolvimento sustentável, uma coisa que é importante para o nordeste, por conta de boa parte do nordeste ter problemas com recursos hídricos. Como se a gente vivesse numa seca, que para vivermos temos que saber manejar recursos hídricos.” Diniz ainda diz que pensar no nordeste e não pensar no desenvolvimento sustentável não faz sentido. Outro ponto que a autora toca é o porquê de não ter se inspirado no cyberpunk, por conta de ter uma estética muito urbanizada e com muitas influências americanizadas.
“Mesmo se você quiser fazer uma história sertãopunk, que se passa nas grandes cidades do nordeste, a estética dessa cidade não vai ser cyberpunk a priori.” aponta a escritora.
Outra referência que a autora cita é a do Realismo Mágico, eles buscam não ficar presos apenas a ficção científica. “Queremos que seja futurista, o sertãopunk é necessariamente especulativo, mas no nordeste temos uma cultura muito interessante aos credos, lendas e religiosidades tanto afro-brasileiras quanto nordestinas.” Diz G.G Diniz. Ela segue dizendo que existem vários aspectos do catolicismo que são únicos do nordeste. E a questão do realismo mágico, é exatamente para abordar essa parte da cultura nordestina.
E por último, mas não menos importante, o Afrofuturismo. A escritora diz ter usado essa referência, em acordo com outros dois escritores idealizadores do Sertãopunk, Alec Silva e Alan de Sá, por serem todos nordestinos negros. “Então tem coisas dos conflitos étnicos do nordeste que são bem únicos para a região. Se formos olhar a história, o Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes do resto do Brasil. Aqui nós temos conflitos étnicos que são bem únicos da região em relação aos negros e os povos originários. Afrofuturismo não contempla os povos originários, mas contempla pessoas negras.” Conclui Diniz.
Ela continua dizendo que para uma história ser considerada Sertãopunk não precisa necessariamente referenciar essas três influências. Mas pelo menos uma, e a questão central da obra tem que ser uma ficção voltada para o futuro ou voltada para os desdobramentos do futuro.
“Uma visão que as pessoas de fora do nordeste têm do nordeste é uma visão muito atrelada ao passado, atrelada a fome, seca, cangaço. Geralmente atrelada a essas três coisas da forma que elas costumavam acontecer no passado. A seca do século XXI é muito diferente da seca do século XVIII. O que a gente quer para o Sertãopunk é a gente pensar no futuro do nordeste. Pensar em como as situações e os problemas que existem no nordeste iriam se desdobrar no futuro.” Diz G.G.
G.G continua“ No meu caso, um dos focos do meu Sertãopunk é o Solarpunk porque escrevo primariamente ficção científica, e trabalho muito os desdobramentos do coronelismo. Porque o coronelismo que acontece agora não é o mesmo do passado, e o do futuro provavelmente vai existir, mas vai ser outra coisa. Aí fiquei pensando o que seria essa outra coisa, aí surgiu o meu livro “O Sertão não Virou Mar”, primeira obra publicada no gênero Sertãopunk, e “Morte Matada” continuação do “O Sertão não Virou Mar.” encerra a autora.
Outro ponto que ela informa é que não basta pegar alguma temática, como o cangaço, por exemplo, e jogar ele para o futuro e reproduzir como ele era no passado. Dizendo que você pode trabalhar o cangaço no sertão, por exemplo, mas você como autor teria que pensar como seria caso surgisse um cangaço no futuro, que provavelmente seria algo muito diferente do que existiu no passado.
Ela ainda segue dizendo que gêneros literários às vezes podem ser propostos pensando em obras que já foram publicadas. Mas você pode fazer um movimento propondo uma coisa nova, e foi assim com ela e seus colegas com o Sertãopunk.
Uma das preocupações dos autores de Sertãopunk é a descaracterização do que torna o gênero único, descaracterização essa feita por pessoas brancas que falam por cima das falas dos autores originais, de acordo com a escritora.
“A minha maior inspiração atualmente é o Ceará, sabe? É o estado que eu vivo, é a cultura que eu estou inserida. A história do Ceará são grandes fontes de inspiração para o que eu escrevo. Mas a gente tem outras inspirações também, especialmente autores negros de ficção científica, são grandes inspirações para mim, como a Octavia Butler.” Conclui G.G Diniz.
A construção de novos gêneros literários só abrem portas para que nossa imaginação possa correr solta. Ainda mais um com uma cara brasileira, em um mercado que é dominado por estrangeiros. Até mesmo autores nacionais acabam caindo na armadilha de tentar americanizar suas obras, mas o Sertãopunk cria essa oportunidade de explorarmos novos horizontes. Talvez não apenas nos livros, mas quem sabe em jogos e no cinema?