JM
Talese 88
Atualizado: 28 de fev. de 2020
Literatura
Gay Talese completa 88 anos com o status de gênio do jornalismo após publicar perfis antológicos e livros-reportagens revolucionários

Jornalista se consagrou ao acrescentar os ensinamentos de Hemingway e Fitzgerald ao texto jornalístico - FRED R. CONRAD/ THE NEW YORK TIMES
Marcus Vinícius Beck
Eis a receita, a velha e boa fórmula, o roteiro da genialidade jornalística e, vejam só, a sensibilidade que falta à reportagem - e que falta faz, faz muita falta!
Um repórter com seu indefectível terno, sua chiquérrima gravata, seus elegantes sapatos lustrosos e seu habitual chapéu (pode ser preto ou não), ensinando aos jovens escribas - e até mesmo aos mais tarimbados - a arte de gastar papel e caneta, essas coisas, pobres moços, que já caíram em desuso na galáxia de gutemberg.
Sim, senhoras e senhores, os manuais de redação enxertaram a cuca do foca com a velha máxima do lead e sublead, sem metáfora, sem metonímia, sem aliteração, ih rapaz, os editores perseguem as aspas previamente e correm para encaixá-la na história, sem levar em consideração que ali tem uma pessoa, e não apenas as protocolares declarações do dia a dia.
O que é importante não é a história em si, e sim se o burocrata falou.
Pra que José, Maria ou Paulo? Pra que os filhos dos anônimos?
Bota o secretário, liga para o fulano, entrevista o sicrano - e pede uma nota oficial, ora!
Por essas e por outras, sejam bem-vindos ao mestre Gay Talese, 88, jornalista americano expoente do New Journalism: “Em cada um dos meus livros há um fascínio pelas verdades mais obscuras da natureza humana, um desejo de ir além da fachada e tocar os nervos e as nuances da vida privada”, escreve o cara em “Fama e Anonimato”, lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

Gay Talese na redação do jornal The New York Times - Foto: Reprodução
Nascido em 7 de fevereiro de 1932, o arrumado Gay (Gaytano) Talese viveu a infância e adolescência na pequena ilha de Ocean City, no estado de Nova Jersey. Ainda na escola, descobriu que o jornalismo poderia dar vazão um fascínio que tinha: ouvir e contar as histórias das pessoas. Talese, já nesta época, escrevia uma coluna de beisebol no “Ocean City Sentinel-Ledger”.
Depois da primeira experiência com a profissão, não demorou muito para que a escrita do jovem ganhasse contornos literários refinados, graças à leitura de autores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Carson McCullers. O repórter ingressara na Universidade de Alabama, onde estudou jornalismo entre 1950 e 1953, e saiu de lá para trabalhar no The New York Times.
A experiência, no entanto, foi um tanto trágica.
Porque a essa altura, lembra a biógrafa Barbara “Lounsberry em Portrait Of An (nonfiction) Artist”, Talese passara a prestar atenção em duas maneiras de escrever: enquanto os jornalistas, especialmente os que trabalhavam nos grandes jornais, falavam sobre poderosos, que venceram na vida com suas histórias de superação, os ficcionistas viam nas pessoas comuns a matéria-prima de contos e romances.
Talese queria fazer reportagens como seus mestres faziam na literatura. Ele conseguiu, é verdade, mas não foi tão rápido assim. Em 1956, passou para a editoria de Esportes do jornal e escrevia insaciavelmente sobre as personalidades que gostava.
Havia liberdade, pouca, muito pouca, porém havia. Sobre o boxeador Floyd Patterson, para termos uma ideia, ele produziu nada menos que 38 matérias. O problema, contudo, é que logo Talese foi designado a ir trabalhar em outra editoria, onde encontraria bem menos figuras interessantes: a Política.
Era preciso respirar novos ares, ir atrás de novos rumos e seduzir outros leitores…
E foi isso que Talese fez. Inconformado com a falta de liberdade para escrever, o jornalista logo começou a colaborar com a revista Esquire, em 1965: tinha mais tempo para produzir e redigir suas reportagens. Nesta década ainda lançou o livro“O Reino e o Poder”, obra em que retrata a história do The New York Times desde a fundação, em 1851, até 1968.
“Para surpresa dos próprios editores, o livro se dependurou nas listas de best-sellers e lá permaneceu por seis meses”, conta o escritor Humberto Werneck, no prefácio de “Fama e Anonimato”. O sucesso foi estrondoso entre público e crítica, mas o Times não via o trabalho do ex-funcionário dessa maneira: nas duas maiores revistas semanais do país, Times e Newsweek, a obra alcançou o primeiro lugar. “Mas no New York Times (...) narizes se torceram para a forma como o jornal foi retratado”, relatou Werneck.
Da esquerda à direita: Hunter S. Thompson, Tom Wolfe, Norman Mailer e Truman Capote - Foto: Reprodução
Na trincheira, ao seu lado, estavam nomes como Tom Wolfe, Truman Capote, Norman Mailer e Hunter S. Thompson, este um demente adepto de um tipo de jornalismo mais radical ao dos seus colegas. Dono de texto repleto de onomatopéias, figuras de linguagem e fluxo de consciência, Wolfe diz que os jornalistas daquele período tinham a pretensão de conseguir um emprego num jornal para pagar o aluguel, acumular experiências e conhecer o mundo.
“Depois, em algum momento, demitir-se pura e simplesmente, dizer adeus ao jornalismo, mudar para uma cabana em algum lugar, trabalhar dia e noite durante seis meses, e iluminar o céu com o triunfo final”, escreve o jornalista, em “Radical Chique o Novo Jornalismo”, obra de ensaios sobre o New Journalism lançada no Brasil pela Companhia das Letras.
De fato, Talese não abandonou o jornalismo: ele continuou escrevendo, e reportagens primorosas, como o perfil “Frank Sinatra Está Resfriado”, considerado um dos melhores textos já publicados na imprensa. Até hoje a obra fascina estudantes que estão de saco cheio com o velho estilo engessado dos manuais de redação e repórteres rodados que querem descobrir na obra algo novo.
Anos mais tarde, em 1971, o repórter mergulhou na história da máfia italiana e publicou “Honra Teu Pai”. Para conhecer como funcionava as entranhas da família italiana, o repórter ficou amigo do filho do chefe, Joe Bonanno, e as manobras para se aproximar se estendem entre os dois por anos e anos.
Mas, certamente, a obra-prima de Talese foi “A Mulher do Próximo”, de 1980, um luxuriante painel das transformações sexuais pelas quais passou a moral e a sociedade norte-americana, em meados do XX. Talese colocou seu casamento em cheque, participando de orgias, trabalhando em boates, se pondo no centro da história, sempre em terceira pessoa.
Sem dúvida, pariu uma verdadeira crônica sobre os costumes, a permissividade e o moralismo da sociedade americana.
Sim, a história de Gay Talese e da imprensa no século XX se confundem. Não importa se a principal fonte do seu último livro, “Voyeur”, desmentiu o que lhe contou, nem nada: todo repórter que deseja gastar sapato, tem de ter obrigatoriamente Talese como um mestre.
Com ele o jornalismo é, sim, sedutor.
Trailer do documentário 'Voyeur' - Foto: Reprodução/ Netflix