Marcus Vinícius Beck
Trabalhadores, uni-vos
Atualizado: 17 de mai. de 2021
Ensaio
Insurreição popular que ocupou Paris completa 150 anos, mas cai no esquecimento numa sociedade desmemoriada massacrada pelo capital

O quadro ‘A Barricada ou a Espera’ foi pintado pelo artista André Devambez, em maio de 1871 - Foto: Reprodução
Foi lá pelos idos de outubro ou novembro de 2016.
Maia comentou sobre a Comuna de Paris na Redação da Rádio Libertária. “Foi uma experiência sensacional que mudou o senso de coletividade”, asseverou a camarada. Eu, apesar de compenetrado no que ela dizia, engrenei numa viagem ao final do século 19 que desembarcou no primeiro governo a que se tem notícia de caráter irrevogavelmente popular da História. “Somos entusiastas da revolta do povo”, falei.
Era mais ou menos o que cantara John Lennon em “Power To The People”, faixa que faz parte do disco “Legally Blonde 2: Red, White & Blonde”, um clássico da luta pelos direitos civis. Acredito que se faz necessário ponderar que o assunto aqui é luta, mas outra, e igualmente intensa, libertária e libertina. Um orgasmo rebelde prestes a explodir, digamos.
Lembrei-me da velha comuna ao ler um ensaio do jornalista Sérgio Augusto veiculado no suplemento Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, no dia 4 de abril último. E percebi o que já estava bastante claro aos leitores da mídia hegemônica do eixo Rio-SP: um dos episódios mais importantes da História foi deselegantemente expelido das páginas dos jornais.
O assunto é desimportante? Não tem valor-notícia, isto é, não atende aos preceitos básicos para aquilo que entendemos como algo a ser publicado nos veículos? Ou simplesmente os escribas de aluguéis acharam por bem menosprezar um dos períodos mais importantes da História?
Ok, justiça seja feita: menos o mestre do jornalismo cultural brasileiro não deixou a Comuna passar batida. Mas Sérgio é um caso à parte: no obscurantismo ao qual estamos imersos, ele vem se mostrando uma voz a ser ouvida. Isso num país que não tem vergonha de flertar com o neoliberalismo massacrante e ideias terraplanistas é quase como se fosse um raro balbucio de inteligência no covil dos incultos, de um cara que fora engaiolado pela ditadura por sua atividade em O Pasquim, mas que não se curva de abordar os feitos mais importantes do socialismo.
Se olharmos bem para a situação, talvez ela não chegue a ser uma novidade. Porque, primeiro, povo sem medo e de luta não é notícia – ao menos por aqui. Segundo, rememorar um feito da classe operária parisiense seria encorajar a população a ir às ruas para protestar contra a calamidade sanitária e a peste política em curso no país, o que representaria uma ameaça contra a saúde coletiva. Terceiro, lá um governo opressor foi derrubado pelos.... operários!
Por 72 dias Paris fora evacuada, para implantar o primeiro autogoverno declaradamente proletário, em pleno contexto pós-Revolução Industrial e, portanto, com a consolidação do capitalismo e pulsar de ideias comunistas e anarquistas correndo pela esfera pública. Sem aceitar a derrota na guerra contra a Prússia e assistindo tropas rufando tambores por tudo que é canto, o conturbado Estado francês foi parar nas mãos dos proletas: a classe social mais desfavorecida se voltou contra a burguesia e o governo de Napoleão 3º, que ruiu até se desfalecer a partir das batalhas dos proletários por mais dignidade e qualidade de vida.
Os trabalhadores pensavam assim: bulhufas pra esse negócio de medo ou temor pela repressão estatal. A insurreição popular, sem mais delongas ou excesso de zelo e cuidado, colocou em prática medidas que fizeram tremer os pilares da república francesa. A primeira delas foi adotar o calendário da Revolução de 1793, que fora abolido em 1805, por Napoleão Bonaparte. Depois, dissociar a religião do estado. Espólios sem herdeiros eram desapropriados.
Parou por aí? Não, não parou por aí: a pena de morte foi extinta, bem como o serviço militar obrigatório, essa bizarrice da qual não conseguimos nos livrar. Instituiu-se também a igualdade entre homem e mulher e acabou-se com o exército regular. Casas vazias, sem cumprir sua função social, foram desapropriadas e reocupadas pelo povo, e cada moradia passou a contar com um comitê cujo objetivo era colocar em prática a concepção universal de teto para todos.
E assim a Revolução da Comuna, peitando os pilares mais repressores da liberdade individual (no sentido burguês) que negam a igualdade aos mais favorecidos, continuou: a jornada de trabalho foi reduzida, com o fim da labuta noturna e da exploração laboral infantil. Os artistas viviam sob os preceitos utópicos da autogestão. Oficinas fechadas foram abertas, tornando-se cooperativas. Os efeitos dessa Revolução se fazem sentir até hoje, por exemplo, na estrutura da imprensa francesa: lá os jornalistas são acionistas dos principais jornais do país.
A educação virou laica, gratuita e politécnica. Foram criadas ainda pensões para viúvas e crianças e extinta multas sobre os salários dos trabalhadores, além das fábricas inutilizadas tomadas por eles. “Eu sou, graças ao povo de Paris, com a política até o pescoço. Paris é um verdadeiro paraíso! Sem polícia, sem disparates, sem acusações de qualquer tipo, não importa o quê, tudo em Paris funciona como um relógio, oh, se pudesse ficar assim para sempre”, escreveu o pintor francês Gustave Coubert, numa carta para sua família, na qual descreve o clima daqueles dias.

'Os Britadores de Pedra', quadro pintada pelo artista Gustave Coubert, em 1849
Sem poder fazer frente ao poderio bélico das forças armadas, a Comuna fora submetida a derrotas. Num primeiro momento, havia a inexperiência organizacional. Noutro, o que pegava era mesmo o arsenal das tropas estatais. Em definitivo, o fim se sacramentou entre os dias 22 e 28 de maio de 1871, num episódio que ficara registrado nas linhas da História como Semana Sangrenta: a resistência popular nos distritos de Paris foi dizimada pelos soldados franceses e prussianos, em um dos episódios seguramente mais violentos do século 19.
Só que, um dos acontecimentos mais acalentadores ao sonho de emancipação do proletariado, não seria fadado a morrer nem mesmo com o sangue dos trabalhadores mortos escorrendo pelas ruas: a Comuna vive e resiste na obra “Bola de Sebo” (1880), do escritor Guy Maupassant, e no filme “La Commune” (2000), de Peter Watkins. Resiste também nas pinturas de Gustave Coubert e Diego Rivera ou nas palavras do velho Karl Marx e do rebelde Pierre-Joseph Proudhon que, junto com o barbudo comunista, ajudou a disseminar ideias que denunciavam a farsa do capitalismo.
Proudhon sacudiu as bases do capitalismo com “O Qué É Propriedade” (1840), livro no qual reforça seus parâmetros do que seria a propriedade, tanto a grupal quanto a individual. Ele arrisca: “propriedade é a maior força revolucionária que existe, com uma capacidade inigualável de se lançar ela própria contra a autoridade”. E completa: “a principal função da propriedade privada dentro de um sistema político deve ser atuar como um contrapeso ao poder do estado, para, desta forma, assegurar a liberdade do indivíduo”.
As ideias proudhonianas proporcionaram a compreensão que o capitalismo era um sistema feito sob o pilar da desigualdade e dos preceitos da exploração. Junto com Marx, que à época da Comuna tinha escrito “Manifesto Comunista” (1848), fervilhou o debate público. Não era mais possível viver uma vida sem prazer, baseada numa lógica de trabalho que não raro condenavam homens e mulheres à vala do labor, trabalhando dezoito, vinte horas por dia.
Além disso, como denunciou Charles Baudelaire em “Alguns Caricaturistas Franceses” (1857), o burguês via a arte com desprezo, pois o artista não se furtava em flanar entre bêbados e desalentados. “Até o momento, só os artistas compreenderam o quanto há de sério ali, e que aquilo é realmente matéria digna de estudo. Percebe-se que falo de Daumier”, atesta Baudelaire, poeta que estava em sintonia com as ideias borbulhantes da Comuna de Paris.
Honoré Daumier, vale ressaltar, foi o cara que pintou e fez charges dos homens que riam do seu tempo e das suas desgraças dele, além de ser um dos precursores da litografia e do naturalismo. Desenvolveu o que hoje entendemos como linguagem da caricatura.
Além de Baudelaire e Daumier, o pano de fundo de Paris durante os dias de Comuna foram explorados nas obras de Balzac, Flaubert, Daumier, Courbet, Marx e Eugène Haussmann, que condensaram em suas produções o cenário político e social alucinante da - para evocar uma expressão cunhada pelo filósofo Walter Benjamin - capital do século 19: foi nesse período que a experiência prática dos meios de produção serem tomados pelos trabalhadores serviu como base para a Revolução Russa, mas também eclodiu o capitalismo e mergulhou a humanidade numa banheira de repressão, na qual estamos imersos até hoje.
Mas o legado da Comuna, esse sim, abalou o mundo entre 18 e 28 de maio de 1871: é possível vê-lo no sonho de todos aqueles que não se conformam com a repressão do homem pelo homem.
Marcus Vinícius Beck, jornalista e escritor. Autor de "Diário Subversivo: Dias de Embriaguez, Utopia e Tesão". É editor de cultura do Jornal Metamorfose