JM
Transformar arte em vida e vida em arte
Entrevista
Em bate-papo com o JM, Andarilho Cha fala sobre a carreira, importância da arte negra e novos projetos

Andarilho em seu show “Parlapatões”. Foto por: @sergiofe.z
Júlia Aguiar
Performático, verdadeiro e visceral. O personagem Andarilho Cha é uma mistura de Ney Matogrosso com Luiz Melodia em tempos contemporâneos, sua arte é tão vibrante quanto suas canções. Por sorte, tive o prazer de assistir Cha ao vivo em contexto pré-pandemia, confesso que sua energia envolve qualquer ser vivo que esteja no mesmo ambiente que ele. É como se o mundo parasse por um instante, e seu corpo fosse tomado pelo groove melódico e sua voz potente à lá Tim Maia.
“Sou andarilho que sai para a guerra sem armadura blindada, só com a voz como arma e a canção vagabunda no peito”, narra em Pronuncia 01, primeira faixa de seu álbum “Não Esqueça de Sobreviver para Continuar nos Ouvindo”. A liberdade de seus versos inspira uma mudança na perspectiva sonora daquilo que está por aí nos streamings da vida, é curioso perceber como sua arte busca referências oitentistas com uma roupagem atual.
Dance e não se esqueça de se jogar no abismo corporal provocado pela sonoridade autentica de suas músicas! O artista por trás de Andarilho é Charles Alberto, um ser plural, circense, teatral e questionador.
Confira a entrevista do Jornal Metamorfose com Cha.
Metamorfose: Andarilho Cha, como surgiu esse nome?
Andarilho: Andarilho Cha é a junção da criatura com o criador, no caso eu Charles Alberto ator, cantor, compositor e dançarino ou mais conhecido como Cha Alberto e a minha criação: o Andarilho.
O Andarilho é um personagem que criei e esse personagem, entidade e alter ego define o estilo de manifestação artística musical e teatral que faço, geralmente para apresentar minhas músicas autorais. Esse personagem ultra espontâneo, transita entre o espirito humorado, anarquista, lunático, provocativo desconfigurando a forma humana.
"Costumo dizer que o Andarilho é algo que está dentro de todos nós, mas escondemos por medo dos julgamentos e pelas amarras estéticas e mentais da nossa sociedade".
Metamorfose: Você se refere à sua arte como MPBT - música preta brasileira teatral -, o que significa esse termo para você?
Andarilho: Essa outra criação batiza o estilo musical MPBT - Música Preta Brasileira Teatral, quando meu disco de estreia produzido por Roger Guitarra ficou pronto e pela sua estética achei que a definição MPB não seria adequada.
O que é MPB? O que a Elite decidiu dizer que é bom e todos nós compramos essa ideia até hoje? Ou Marília Mendonça, Ludmila e os Sertafunks ou Pagonejos que temos por aí?
Sem crítica direta a nenhum estilo, pois eu Cha Alberto sou influenciado e absorvo tudo como uma esponja e disso repasso o meu ponto de vista. Tanto que no disco temos um mix de sonoridades, junto das minhas poesias e pronuncias trazendo o teatro para o conceito que não entra somente nas apresentações.
Disso a justificativa, Brasil é por que assim como o Brasil meu som e estética podem ser plurais, porém Preta defendida e protagonizada por um artista Preto e influenciada pela Black Músic do mundo também... E muito mais!
Metamorfose: Qual a importância da arte negra pra você?
Andarilho: A cultura negra sempre esteve na base para poder contar a nossa história, junto dos indígenas é claro. Porém cito só as duas etnias pois foram ambas apagadas e assim na música mundial, principais estilos foram nascendo e sendo apropriados e os Pretos em grande proporção continuam marginalizados enquanto a nossa arte, vende discos, toca nas rádios, nos clipes em bocas e corpos não pretos.
Meu problema não é com isso. E sim, o que faremos daqui para frente agora que falamos disso. Eu fui e sou influenciado por artistas brancos que cantavam música negra e continuo sendo, tá aí a força da arte negra que mesmo em outra pele ela transborda...
Diferença é que hoje nós temos como missão reparar erros de um sistema muito bem articulado e branco, legitimando a raiz de todo o estilo e dando cada vez mais voz para artistas pretos que dentro também das armadilhas desse sistema nos coloca num pode e não pode careta. Que no caso, se não for o que o mercado diz que pode, A DE UM PRETO QUERER TER A OUSADIA DE CRIAR O SEU ESTILO. MPBT!

Cha Alberto. Foto: @uly.nogueira
Metamorfose: Sua arte é multidimensional, como é essa mistura de poesia, música, teatro e música pra você? Porque misturar tudo?
Andarilho: Sou filho de cantor de música sertaneja e bolero, minha primeira grande diva foi a Xuxa, meus primeiros ídolos quando criança foi o grupo É o tchan. Dancei muito Axé Music até que na adolescência me tornei Clubber e virei um amante da música eletrônica, sou até hoje. Quando fiquei adulto resolvi flertar com o estilo de se vestir, andar com calça mega apertada da ala alternativa, ouvir anos 80, rock e indie rock.
No meio disso era influenciado pela MPB elitizada e a populesca, um sonho reprimido de fazer um espetáculo igual a dos meus dois grandes ídolos Madonna e Michael Jackson. Quando entrei no teatro escola Macunaíma as possibilidades criaram asas e a poesia chegou naturalmente e assim foi nascendo no processo a junção musical, poética e teatral do Cha/ Andarilho que tem tudo isso já citado e mais Itamar Assumpção, Rita Lee, Prince, David Bowie, Grace Jones, Fela Kute e todos esses nomes em que se percebe que uma rica poética, são performáticos e criadores.
Repito que artistas são esponjas e assim com uma bagagem tão mult eu demorei para me definir e gosto da ideia de ser Mutante. Como os X-Men minha outra paixão!
Metamorfose: Em uma entrevista recente, você diz que um dia gostaria de fugir com o circo, você acredita que a arte circense sendo tão livre e performática, te influencia em suas performances?
Andarilho: Na verdade essa fala "Fugir com o circo" é uma expressão libertadora que uso quando me refiro ao meu passado trabalhando por 10 anos na área administrativa, sofrendo muitos abusos psicológicos até criar coragem para largar tudo e viver de arte.
Fui uma criança reprimida sexualmente e racialmente, demorando para ter coragem e aceitar o que é belo em mim. O teatro, o movimento Clubber e a Madonna me libertaram de muito mal (risos). Acredito que o personagem Andarilho tem um pouco haver com esse período reprimido pois ele é totalmente destemido. Minha relação com o Circo é de admiração e embora nesse sonho de início no teatro de fazer um show Michael e Madonna eu pensava em envolver e penso ainda, em envolver tudo em um palco só (Dança, Teatro, Circo, Gente voando) tá tudo ligado e sou um corpo que dança também, então só falta patrocínio (risos).
Metamorfose: Quais suas maiores referências artísticas?
Andarilho: Já citei um monte, e se olhar minha playlist do Spotify ficariam impressionados, mas muita coisa conversa com o meu coração, os grandes transformadores foram os já citados. Eu amo música eletrônica e anos 80, Funk Soul e acho o Funk do Brasil o nosso Punk Rock com muito potencial e por isso que o novo trabalho do Andarilho vai ter um mix desses estilos.
Pois vejo uma mesmice que me dá sono, e um potencial às vezes apagado pelo desejo de hitar, lacrar e etc. Ou as pessoas mudam para música mudar ou a música muda para mudar as pessoas, por isso quero chegar chegando com coisas não óbvias. Quando me refiro a preguiça de um monte de Fast Music me refiro ao Pop pois nas outras cenas nascem coisas interessantes. (Fast Music ou Fast Pop é um termo onde compara a música popular a indústria do Fast Food).
Enche, mas não nutre. Sempre foi assim? Talvez, mas acho que não é ruim ser isso problema que... é só isso?
Metamorfose: Qual o papel da arte para você?
Andarilho: A arte é o legado de uma nação, povo, tribo e quando apagamos a arte, apagamos pessoas. Já sabemos que o poder tá por aí brigando por coisas, jogando Playstation com o mundo e cagando para pessoas.
Precisamos legitimar principalmente a arte de pessoas reprimidas pois onde algo está sendo reprimido pode ter certeza que é por que o poder teme aquilo. Eu como um artista uso essa ferramenta para propagar e através do meu ponto de vista gerar essa energia.
Metamorfose: Seu álbum "Não esqueça de sobreviver para continuar nos ouvindo" tem um título forte e potente, você acha que a arte salva pessoas?
Andarilho: O nome é forte pois realmente transmitia o meu estado de espirito no momento, trabalhando em um lugar onde não queria, tendo que ajudar a família e com muitos quereres e medo. Se ouvir o disco vai perceber um sentimento de urgência em toda a poética.
E se salva vidas? Sim, eu fugi com ela e me sinto maravilhoso, mesmo com todas as dificuldades de ser um artista preto, periférico e gay não me vejo lutando com outra armadura.
Metamorfose: Você pode nos contar um pouco mais sobre suas produções recentes?
Andarilho: "Sem ar + com ideias". E quando iriamos começar as gravações do meu novo som, fomos presenteados com o fim do mundo! A mágica está acontecendo? Simmm!!! Pois #oandarilhomnãopara e o que sair disso reforça a resistência da arte preta e afrofuturista, e dos artistas independentes em geral.
Mesmo nesse período ultra sombrio não faltou parceiros com seus HomeSTUDIOS para criarmos. De resto, jogo de cintura para gravar e produzir a longa distância usando vídeocall, whatsapp, apps de edição de vídeo, de gravador de voz e criatividade ao meu favor.
O projeto que tem o nome de "Sem ar + com ideias" claramente está relacionado com o caos atual, tá nos últimos retoques e tem coprodução do multinstrumentista, arranjador, produtor, cantor Lucas Melifona ou só Melifona no insta. E estamos nos divertindo com os timbres 80, Funks, Sensoriais, Timbres cinematográficos pensando nas performances e etc.
Ao contrário do primeiro disco essas músicas trazem uma poética muito mais encima do humor ácido, do sarcasmo que uma sociedade líquida, desigual, cheia de filtros, cheia de pose e consumo, precisa dançar! Mas paralelo, estou gravando coisas com outros artistas pois acho que o momento tá dos feat do fim do mundo, então até o fim do processo tem chão.
Confira o álbum de Andarilho Cha no Spotify:
https://open.spotify.com/album/2ololhaAmFFXAkmuLQhTgo?si=KvayU2PiRbqMGRqWyNifhQ