Marcus Vinícius Beck
Vai Quino, fica Mafalda
Cultura
Um dos chargistas mais importantes da história, Quino ficou conhecido no mundo por rir da realidade a partir de sua célebre personagem

Quino brinca com uma estátua de Mafalda, antes da cerimônia do Príncipe das Astúrias, em 2014. Foto: Miguel Riopa/AFP
Joaquín Salvador Lavado criou Mafalda, icônica personagem das HQs que curtia Beatles, detestava gente autoritária e odiava sopa. Dona de uma inteligência acima da média e sem saco para tolerar a cafonice alheia, ela não se eximia em responder a altura comentários toscos. Por isso, suas tiradas contestatórias marcaram gerações e caíram nas graças do público pelo mundo. Com um detalhe: a célebre personagem foi idealizada num contexto pré-ditadura de Jorge Videla, que atirou a Argentina, em 1976, a um precipício do qual conseguiu se livrar apenas no ano de 1983.
Nascido em 17 de julho de 1932 e considerado um dos melhores cartunistas da história, Quino morreu ontem aos 88 anos em Mendoza, na Argentina, sua cidade natal. Quino, como era chamado pelos admiradores, havia sofrido um AVC na semana passada. Sai de cena o cartunista, permanece sua criação: ele terá sempre o nome ligado ao de Mafalda. Em 1954, começou a trabalhar no ofício que lhe consagraria, desenhando cartuns para jornal. O primeiro emprego foi no semanário “Esto És”, quatro anos após ter tomado a decisão de morar em Buenos Aires para estudar desenho.
Filho de imigrantes espanhóis, Quino se formou na velha tradição de humoristas que gargalhavam da realidade nas tintas da imprensa. Tanto que, em 1965, o público conheceu Mafalda nas páginas do jornal El Mundo - uma das principais publicações da Argentina no período. Anos mais tarde, em entrevista ao La Nación, ele confessou: “Eu nunca terminei de desenhá-la. Uma pena, não?”. À medida que o mundo viu a ascensão do discurso de extrema-direita nos últimos anos, a cultuada personagem de Quino despertou o interesse de feministas e de opositores de Jair Bolsonaro.

Com seus indefectíveis cabelos negros encaracolados, a personagem sempre estava na companhia dos amigos – alguns foram baseados em pessoas do ciclo de Quino. Um é Manolito, inspirado na figura de Anastasio Delgado, um imigrante espanhol que tinha uma padaria em Mendoza. Outro é Felipe, que tem traços de Jorge Timossi, amigo de Quino dos tempos de escola. Sem esquecer de Susanita, menina de classe média, o oposto de Mafalda: a pequena burguesa vivia entre seus sonhos românticos e tinha uma visão do mundo comum ao que se chama de patricinha.
Após deixar de publicar histórias inéditas de Mafalda em 1972, Quino nunca voltou a se dedicar a um personagem fixo. “Desenhei-a por nove anos e ela segue atual”, justificou o cartunista na abertura da 40º Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em 2014. Desde os anos 1970, desenhos inéditos da menina questionadora passaram a ser publicados apenas em ocasiões em que seu criador achava importante. Como, por exemplo, em campanhas a favor da educação, contra a fome e em defesa da infância. Foram, ao todo, 1.928 tiras publicadas, cada uma com uma tirada sagaz e esperta.

Sociedade argentina
Na década de 70, quando Quino deixou de publicar a Mafalda, a violência na sociedade argentina aumentava e a democracia chegou a ser sequestrada pelo esquadrão da morte do governo de Isabelita Perón, que antecedeu o golpe de estado dado pelos militares. Com isso, o exílio de artistas e intelectuais se tornou uma coisa comum. Sempre que questionado sobre o motivo de ‘matar’ Mafalda, o cartunista argumentava que, se insistisse em continuar rindo da realidade a partir da menina, certamente estaria na lista de desaparecidos da ditadura argentina. “Se eu continuasse desenhando, poderia tomar uns quatro tiros”, justificou numa entrevista concedida nos anos 1900.
Mafalda, porém, não parou, muito menos caiu no esquecimento. Desde que ela parou de sair nos jornais, a cada desmando dos poderosos, suas discursos aparecem: seja como meme ou com relançamento de produtos culturais. No início dos anos 80, o cineasta Carlos Márquez fez o longa-metragem “Mafalda – O Filme”, obra inspirada nas tirinhas eternizadas por Quino. Em tempo: como alguém que despertou o olhar crítico de tantas crianças e adolescentes não teve filhos?”É uma porcaria trazer alguém para cá sem ter perguntado”, disse ao jornal EL País lá pelos idos de 1990.
Como se ser o responsável pela criação da personagem mais famosa dos quadrinhos na América Latina não bastasse, Quino também foi laureado com prêmios importantes, como a Ordem Oficial da Legião de Honra, da França, e o prêmio Príncipe de Astúrias, da Espanha. Quando a barra ficou pesada na Argentina, o que facilitou a vida de Quino no exílio foi o fato dele ter criado Mafalda. Após sofrer censura de governos militares que antecederam o de Videla, o cartunista tomou a decisão - junto com sua esposa Alícia Colombo - de rumar para a Europa. Mafalda vive, Quino vive.
