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Versos malditos

O que ler?


Poeta Glauco Mattoso retorna ao mercado editorial com e-book que mescla sexo e reflexões sobre a caretice brasileira

Glauber Mattoso revisa seu trabalho. Foto: O Globo/Reprodução


Marcus Vinícius Beck


A poesia estremece a alma. É um estimulo, uma espécie de viagra literário. Tão necessário quanto o ar, ainda que os caretas e cafonas de plantão não achem que seja. Os versos que escorrem para as páginas, os rabiscos verbais e as métricas marginais ou não, com ou sem os decassílabos empolgados pela dita estética engravatada, tornaram-se o combustível da civilização em tempos de moléstia patológica e política. Ok, provavelmente, claro que é, as asneiras imprimidas nesta página pelo escriba sejam um rompante, ou protesto, sei lá, sobre a arte como remédio para a artilharia retórica web guiada pela milícia do Alvorada.


Multiplicam-se, mais do que nunca, relatos nas redes sociais de gente grilada, sem sono, sem sonho, com medo, com insegurança, sobre a morte iminente provocada pelo coronavírus e menosprezada pelo vírus da farda. “O gajo quer família, alli na salla/ ouvindo o seu sermão, mas, em logar/ daquellas platitudes, vem fallar/ da foda alheia, alem da alheia “mala”’, escreve o poeta Glauco Mattoso num dos sonetos que fazem parte dos e-books “Molysmophobia: Poemas na Pandemia” e “Infinitos Trocadilhos Excolhidos” , lançados pela editora Casa de Ferreiro e que serão distribuídos gratuitamente. São cem poemas feitos entre fevereiro e abril.


Trata-se, isto sim, de uma obra que compila sonetos originalíssimos de Glauco. Redigidos numa linguagem singular, os poemas não se limitam a fabricar comportamentos ou remexer feridas da caretice que regem a sociedade brasileira desde a eleição, tchan, tchan, tchan, do ex-paraquedista expelido do quartel por insubordinação. Os textos foram criados em meio à pandemia do coronavírus, não confundir com ‘gripezinha’, por favor, com o corpo quente pelo desenrolar dos fatos que tomam conta do noticiário. Estamos falando de um ícone do “malditismo literário brasileiro”, sucesso setentista fundamental, do Lampião da Esquina Livre.


Pelas páginas de “Molysmophobia: Poemas na Pandemia” e “Infinitos Trocadilhos Excolhidos”, rolam punhetas, sexo anal, línguas que lambuzam pés, seres movidos pelo sadomasoquismo... Bem aquilo que os profetas daquele livrinho sagrado abominam. “Mais do que um mero diário de quarentena, este volume constitui uma critica trajetória em direcção da consciência libertaria... e libertina, claro”, anota Glauco, na “Nota Introductoria”. O ritmo das palavras, aliás, deixam as rimas no lugar. A metáfora mattosiana se manifesta nas práticas sexuais, digamos, inusitadas que saboreiam e permeiam os textos, cegando o corpo excitado.


Embora transite pouco pelo grande público, os versos caóticos de Glauco Mattoso são reconhecidos pela crítica como tesouros da nossa literatura produzida nos anos de contracultura. Nos anos 1970, o poeta flertara com o desbunde carioca, escrevera em jornais alternativos, como O Pasquim, fizera circular, de 1977 a 1981, entre artistas e intelectuais, seus textos escritos no fanzine artesanal Jornal Dobrabil. Era uma colagem de escritos próprios, plágios erachados e imitações hilárias de notícias de jornal onde escarrava os costumes da nossa sociedade naqueles anos de pré-abertura política. Glauco é o cara que cultua a lenda de ser o maior criador de sonetos.


O poeta, quando era alinhado ao movimento tropicalista, na década de 1970, integrara grupos ativistas ligados ao movimento Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTQIA+), o Somos. “Ninguém confessa aquillo, mas que ja/ fizeram, ja fizeram. Não me accanho/ porem, de confessar que dou, no banho,/ lambidas no que duro sempre está”, diz Glauco, em “Vale Quanto Fella”. Além de escritor, queer e fetichista, Glauco é místico. Por essas e por outras, a vasta obra do escritor é ligada ao universo onírico. Glauco Mattoso, quem diria, está ligado, ligadão. E faz boa literatura.


“Molysmophobia: Poemas na Pandemia” e “Infinitos Trocadilhos Excolhidos”, aliás, são duas obras reconfortantes num momento em que o mercado editorial brasileiro está numa encruzilhada. E o melhor: os dois e-books são distribuídos de graça para o público. Trata-se de uma suruba verborrágica que apenas comprova por que Glauco Mattoso é um dos maiores nomes da poesia brasileira contemporânea. Afinal, não é para qualquer um de ser elogiado publicamente pelo professor e poeta Décio Pignatari, um dos grandes nomes do movimento concretista, estudioso da linguagem. Mas é para Glauco.


Ficha técnica


‘Molysmophobia: Poemas na Pandemia’ e ‘Infinitos Trocadilhos Excolhidos’

Autor: Glauco Mattoso

Editora: Casa de Ferreiro

Gratuito

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