Marcus Vinícius Beck
Vibrações positivas
Atualizado: 14 de mai. de 2021
Música
Cantor, cuja morte completa 40 anos, marcou a história reggae ao tornar o estilo conhecido no mundo inteiro; brasileiro chegou a homenageá-lo num disco no qual traduz suas músicas

O cantor Bob Marley retratado pelo fotógrafo David Burnett, em 1976 - Foto: Reprodução/ Facebook
O reggae suingado do jamaicano Bob Marley embala há décadas os tímpanos dos fãs desse que é considerado um dos artistas mais rentáveis de todos os tempos. “Is This Love”, “One Love” e “Three Little Birds” - e mais uma pilha de pérolas do cancioneiro - subiram ao longo dos anos ao posto de símbolos supremos da canção de paz popularizada por Marley na década de 1970.
No Brasil, o cantor Gilberto Gil foi quem ajudou a colocar na boca do povo o som das boas vibrações mandado por Marley. "Não Chores Mais", versão em português feita no calor da Anistia para “Woman No Cry”, fez o reggae entrar pela primeira vez nos ouvidos brasileiros, num sucesso do qual o autor de “Refazenda” jamais se livrou em sua carreira. E, de quebra, o estilo caribenho virou febre por aqui: a palavra rastaman, por exemplo, tornou-se um refúgio para jovens (ou velhos, dependendo da ocasião) que curtem dar um 'tapa na pantera'.
Históricas canábicas à parte, boa parte da disseminação desse estilo - é verdade - deve ser credenciada ao compositor baiano. Em “Kaya N'gan Daya” (2002), Gil dedicou um repertório inteiro ao jamaicano, criando releituras para canções como “Buffalo Soldier” (Bob Marley e King Sporty) e “Positive Vibration” (Vicent Ford). No álbum, concebeu outra versão para “Não Chores Mais”, mas dessa vez com o charme harmônico dos Paralamas do Sucesso e letra cantada num inglês perfeito. Sem esconder, claro, o sotaque brasileiro. Ou seja, é um charme sonoro.
Voltando no tempo: em 1980, Marley desembarcou em Manaus vindo de Londres, onde morava, e causara espanto na caretice dos militares que, segundo o produtor Marcelo Mazzola, na obra “Ouvindo Estrelas – A Luta, A Ousadia e a Glória dos Maiores Produtores Musicais do Brasil” (2007), acharam esquisito visual do guitarrista Junior Marvin, do cantor Jacob Miller, do executivo Chris Blackwell e sua esposa Nathalia Delon, atriz e modelo. Convenhamos: não é de se causar espanto, já que os costumes da trupe fardada não abrem espaço para comportamentos diferentes.
Para reabastecer o combustível da nave, o voo fez duas escalas em território brasileiro: além da capital amazonense, parou também em Brasília. Até que, finalmente, o jato particular que pertencia à gravadora jamaicana Island Records chegou ao aeroporto Santos Dumont, de frente para a Baía da Guanabara, às 18h30, de uma terça-feira. Assim que saiu do avião, com um vestuário (boina) tradicional da Jamaica depositado na cabeça, expressou desejo de conhecer Gilberto Gil – o brasileiro, um ano antes, estourara “Não Chores Mais”.
“O samba e o reggae são a mesma coisa, têm o mesmo sentimento de raízes africanas”, definiu Marley a jornalistas no hotel Copacabana Palace, segundo matéria publicada no jornal O Globo, em 18 de março de 1981. Durante sua estadia no Rio, ele bateu perna no calçadão da ‘princesinha do mar’, subiu no Pão de Açúcar, encantou-se com a vista privilegiada pelo relevo da Cidade Maravilhosa e fumou cigarros de maconha – o episódio é detalhado na obra “Noites Tropicais: Solos, Improvisos e Memórias Musicais” (2000), do jornalista e produtor Nelson Motta.
Releitura da música 'Positive Vibration' feita pelo cantor Gilberto Gil, no disco 'Kaya N'gan Daya'
Marley, apaixonado pelo futebol tricampeão do mundo, jogou bola com um time de peso da nossa cultura: estavam lá, conforme O Globo, nomes como Toquinho, Paulo César Caju, Jacob Miller, Junior Marvin e Chico Buarque. O time do ‘rei do reggae’ venceu a partida por 3 a 0, com um gol anotado por ele, Chico e Caju. Em suas entrevistas, dizia que era fã de Rivelino, Jairzinho e Pelé. “A Jamaica gosta de futebol por causa do Brasil”, disse ele, ainda no Brasil.
Meses depois, o mundo se chocou com a degradação da saúde do artista: ele sofria de um câncer de pele agressivo conhecido como melanoma, com o qual fora diagnosticado em 1977. Seguiu, porém, sua tradição religiosa, dispensando o tratamento para conter o avanço e o estrago da doença. O corpo, segundo os preceitos do rastafári, era sagrado e, por isso, não poderia ser modificado. Daí os adeptos deixavam o cabelo e barba crescerem. Eram os 'deadlocks'.
A revista New Yorker, em extensa reportagem sobre o artista publicada em 2017, disse que o empresário de Marley, Danny Sims, revelara que um médico chegou a alertar para a gravidade do estado de saúde do cantor. “Tinha mais câncer em seu corpo do que eu já vi em um ser humano vivo”, afirmou. Após a doença se espalhar para órgãos como cérebro e pulmão, ele morreu em 11 de maio de 1981, aos 36 anos. Com 13 filhos, não deixou testamento.
Dono de uma discografia que conta com pérolas como “Rastaman Vibration” (1976), “Exodus” (1977) e “Kaya” (1978), Bob Marley deixou a imagem de uma pessoa preocupada em disseminar a paz pelo mundo. É como o biógrafo Roger Steffens termina “Tenho Que Contar: História Oral de Bob Marley” (2017): a base espiritual que ele lançara em suas músicas vai durar para toda a eternidade. Tivesse vivido pouco mais, talvez teria se escandalizado com o mundo. Ou, quem sabe, salvaria todos nós dos horrores do capitalismo.
Mas, sem os quase sempre arriscados exercícios de futurologia, Bob Marley popularizou um gênero musical que simboliza a trilha sonora do arrefecimento do neoliberalismo. Sim, ainda que cantada sob os preceitos religiosos do povo jamaicano, é inegável que a obra dele tentara nos alertar para o que estava por vir nas décadas seguintes, em termos de retirada dos direitos trabalhistas, vida sem dignidade, exploração laboral e demais tipos de opressão do capital.
Claro, não lhe demos ouvidos. E agora, embevecidos pelo choro, sentimos nossa voz sendo calada aos poucos, numa trama descarada e orquestrada pelo Chicago Boy que se faz sinistro da economia - eu falo do Brasil, evidentemente, porém o enredo é plagiado noutros lugares do mundo, como Reino Unido, Itália, Hungria e todo país movido pela brutalidade da cifra.
Nem tudo são dores, porém: a arte está para a transformação social assim como a lata de lixo da História para os tiranos. É uma simbiose indissociável. Ouçam Bob Marley e Gilberto Gil.