Marcus Vinícius Beck
Você não pode ter tudo o que quer
Obituário
Dono de estilo jazzístico e elegante de tocar, Charlie Watts se juntou aos Rolling Stones durante o primeiro ano de existência da banda, que já contava com a dupla Mick Jagger e Keith Richards

Mick Jagger, Keith Richards e Charlie Watts (sentado) durante as gravações do LP 'Exile On Main Street', disco lançado em 1972 - Foto: Dominique Tarle/ Reprodução
O groove mais cool do rock saiu do ritmo: morreu ontem Charlie Watts, 80, o lendário baterista dos Rolling Stones. Dono de estilo simples e direito, como quem estivesse segurando um cigarro no lugar das baquetas, Watts comandava desde 1963 a cama na qual o mestre dos riffs, Keith Richards, se deitara nas emblemáticas “Loving Cup”, “Brow Sugar”, “Can´t You Hear me Knocking”, “Monkey Man”, “Miss You” e “Street Fight Man”. A causa do falecimento não foi divulgada até o fechamento desta edição.
Watts teve influência seminal na composição estética dos Stones junto com o vocalista Mick Jagger. Em entrevista à revista Rolling Stone em 2005, o músico disse que imaginava “algo cativante e, eu espero, bonito. Mas você não quer que seja cafona. A língua é um exemplo clássico. Por mim, iria direito para a beleza. Mas, por conta da posição em que estamos, você tem que ter algo arrebatador que tome conta”.
Nascido em 2 de junho de 1941 em Londres, a bateria entrou na vida do instrumentista ainda na adolescência, época em que praticava skiffe, gênero musical inglês inspirado nas jazz bands americanas dos anos 1920. Mesmo chefe supremo das baquetas da maior banda de rock de todos os tempos, Watts era apaixonado por R&B, jazz e blues. E ao longo das quase seis últimas décadas de carreira, quando não estava em turnê com os Stones pelo mundo, tocava no Ronnie Scott´s, conhecido clube de jazz londrino.
Essa formação musical lhe fez um baterista raro e levara Richards a dizer que não eram ele e Jagger os responsáveis pela identidade dos Stones, e sim Watts. Os shows da lendária banda, de fato, tinham um compasso: Watts. E, quase que solitariamente, era quem conduzia os concertos. O começo, o meio e o fim. Seus grandes momentos na discografia stoniana estão registrados nas obras-primas “Beggars Banquet” (1968), “Let It Bleed” (1969), “Sticky Fingers” (1971) e “Exile On Main Street” (1972).
À primeira vista, o processo criativo dos Stones seguia um ritmo: Richards olhava para Watts e, depois, Bill se levantava da cadeira. “No resto do tempo, é só besteira. Mas se Bill se levanta da cadeira e Keith está olhando para Charlie, você sabe que está chegando perto. E vai de ‘que diabos é isso? a ‘Meu Deus do céu!’ É uma experiência de outro mundo”, contou o engenheiro de som de “Exile”, Andy Johns, em entrevista à Rolling Stone no ano de 2010. “Happy”, do mesmo disco, foi concebida nestes moldes.
Ou melhor, o eixo criativo ficou por conta basicamente de Watts e Richards. Jagger estava em Paris com a esposa Bianca Jagger, e o guitarrista ficou sozinho no porão da famosa mansão francesa em que as faixas de “Exile” foram criadas. A pegada seca, aliada à sequência de acordes, representavam o rock límpido que os Stones tanto presam e o que os tornou conhecidos no mundo inteiro, razão pela qual adolescentes rebeldes imitaram esse estilo ao redor do mundo nas últimas décadas.
Na famosa turnê de 1972 pelos EUA, quando a excursão dos Rolling Stones foi acompanhada por jornalistas como Truman Capote, Watts fugia das fãs – era casado com a mesma mulher desde 1964. Numa visita à mansão do fundador da Playboy, Hugh Hefner, o músico passou o tempo todo jogando sinuca. Apesar de conviver com junkies como Richards, foi o guitarrista-pirata quem lhe fez abandonar as drogas: Watts teve um período, nos anos 70 e 80, no qual consumiu álcool, cocaína e heroína.
É de Watts, aliás, uma das histórias mais icônicas dos bastidores do rock. Durante uma turnê pela Europa na década de 1980, desferiu um murro em Jagger que, bêbado, num motel, chamou o chefe das baquetas de “meu baterista” numa ligação telefônica. “Você é quem é meu cantor de merda”, pontuou o músico, acendendo um cigarro, enquanto cruzava as pernas, de terno e gravata – seu indefectível e elegante figurino.
Jazz

Charlie Watts em 1965: músico era apaixonado por R&B, jazz e blues - Foto: Arquivo George Wilkes
Em maio de 1985, gravou o primeiro LP com a Charlie Watts Orchestra, no Fulham Hall, pela gravadora CBS, numa big band que reunia 32 músicos de três gerações diferentes, como percussionistas, trompetistas, trombonistas, baixistas, vibrafonistas, clarinetistas, pianistas, violoncelista e cantores. Para Watts, isso era como ser criança novamente, quando ouvia em casa clássicos de John Coltrane e Miles Davis.
Sobre suas influências jazzísticas, dizia: “Elvin Jones era fenomenal. E também Roy Haynes. Mas sou mais influenciado por outros caras como Kenny Clarke”. Em texto publicado no jornal The New York Times em 1978, o crítico Robert Palmer afirmou que “Charlie Watts está impregnado de R&B, mas suas origens estão no jazz. Comparando ao senhor Watts, a maioria dos bateristas de rock soam desajeitados: eles fazem muito barulho, porém não têm o verdadeiro embalo do rock ´n´roll”.
Diagnosticado com câncer de garganta em 2004, o músico se recuperou da doença, retornando à ativa meses depois. No ano seguinte, tocou na praia de Copacabana, num dos maiores concertos da história do rock. Em meados dos anos 2010, passou pelo Brasil com a turnê Olé, onde tocou nos estádios do Maracanã, no Rio de Janeiro, Beira-Rio, na cidade de Porto Alegre, e no Morumbi, em São Paulo.
Em meio à pandemia, Watts emocionou ao aparecer sorridente numa live em que os Rolling Stones tocaram “You Can´t Always Get What You Want”. No início deste mês, o músico informou que perderia parte da turnê No Filter em decorrência de uma cirurgia não especificada, mas “bem-sucedida”. Steven Jordan, que participara dos discos solos de Keith Richards e de um especial em homenagem a Chuck Berry, foi anunciado para substitui-lo. “Pela primeira vez meu timing estava um pouco errado”, disse.
Mais de 50 anos depois da morte de Brian Jones, Charlie Watts sobe para o andar de cima e junta-se ao saxofonista Bobby Keys, lendário músico que excursionou com os Rolling Stones até sua morte, em 2014, de cirrose hepática. Obrigado, Charlie! (Com informações da Agência Estado)
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