top of page
  • Foto do escritorJM

Xiiii, e esses cabeludos?

Contracultura

Há 45 anos, durante a ditadura civil e militar, jovens idealizaram o Festival de Águas Claras e o Hollywood Rock




Festival de Águas Claras foi realizada em 1975, 1981, 1983 e 1984 - Reprodução/ Revista Trip



O que o repórter de cultura quer saber - ainda mais numa época em que os olhos gordos da indústria cultural menosprezam a rebeldia juvenil - sobre o Woodstock Brasileiro? Com a caixa de som berrando a música Volunteers, do Jefferson Airplane, ele acredita que a contracultura divertiu um bando de maluco que até hoje tem uma porrada de história para contar. É o caso do saudoso mestre Luiz Carlos Maciel, por exemplo: “a música era o principal canal de comunicação dos jovens”, disse o pensador do underground, em Os Anos 60.


Sim, sim… a coisa é mais ou menos por aí mesmo. Durante quatro dias em agosto de 1969, pelo menos 500 mil jovens foram para uma fazenda no estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, curtir as principais bandas do momento. O Festival de Woodstock, surgido uma década depois do rock and roll, era bem mais do que a música do momento e, bem, uma galera genial fazia uma sonzeira estridente no rolê: Joan Baez, Santana, The Who, Janis Joplin, Jefferson Airplane, Jimi Hendrix, Joe Cocker - só para citar alguns.


Meio atrasado, é verdade, mas por aqui também rolou um ‘Woodstock à brasileira’ - dois, para ser mais exato. E os mais lembrados são o Festival de Águas Claras e o Hollywood Rock. Com a primeira edição realizada em 1975, em plena ditadura civil e militar, o de Águas Claras foi organizado na cidade de Iacanga (SP). “O consumo de tóxicos foi quase pela totalidade dos participantes”, dizia um trecho de documento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, exibido no documentário O Barato de Iacanga, do jornalista Thiago Mattar.



Da esquerda à direita: Jefferson Airplane, Jimi Hendrix e Joe Cocker - Foto: Reprodução/ Acervo Histórico


“Eu tinha escrito uma peça de teatro e estava indo encená-la ao ar livre quando algumas pessoas começaram a aparecer para tocar com a gente”, relata o fundador do Festival de Águas Claras, Levinha, em O Barato de Iacanga, obra que está disponível no Netflix. Então com 22 anos, o jovem usou a fazenda do pai como ponto de encontro para 30 mil jovens do Brasil e de outros países da América do Sul que estavam ali para ver grupos como O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Mutantes, sem a Rita Lee nos vocais, e Moto Perpétuo.


A cena que fica da primeira edição é um bando de maluco beleza andando de um lado para o outro pelado, com cigarro de maconha na boca, chá de cogumelo na cabeça, muita música boa rolando e clima de paz e amor. Pelo palco do festival, nas edições seguintes, se apresentaram nomes de peso da Música Popular Brasileira (MPB), como João Gilberto, Jorge Mautner, Walter Franco, Gilberto Gil, Raul Seixas, Alceu Valença, Luiz Gonzaga, Hermeto Pascoal e tantos outros. “Quem viu o Hermeto solar por três horas não esquece”, afirmou Levinha.


Gravada na memória de quem teve o privilégio de participar dessa celebração da contracultura, as imagens de 1981 com Gilberto Gil falando sobre guerra cultural antes de “Não Chores Mais” (Amigos presos/ Amigos sumindo assim/ Pra nunca mais/ Tais recordações/ Retratos do mal em si/ Melhor é deixar pra trás) soam mais atuais do que nunca e ainda reverberam como uma pancada no peito diante da ascensão do conservadorismo no campo dos costumes. Eis o poder da arte: eternizar momentos, sensações e discursos.


No Rio


Longe do interior de São Paulo, outro movimento importante rolou no estádio General Severiano, do Botafogo, em janeiro de 1975. Ao longo de quatro fins de semana, o Hollywood Rock, produzido pelo jornalista Nelson Motta, abriu portas para uma nova consciência da juventude. “Demorou, mas pintou”, lia-se no cartaz oficial do evento, que dizia coisas como “o primeiro grande concerto de rock brasileiro”. E foi. Pelo palco do festival, passaram gente do primeiro time da música, como Rita Lee & Tutti Frutti, Mutantes e Veludo, O Terço, O Peso e Vímana, Erasmo Carlos, Cely Campello e Raul Seixas.


Raul, inclusive, subiu ao palco sob luz estroboscópica e cacofonia da banda. Logo de cara, ele mandou Como Vovó Já Dizia, Al Capone e As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Na sequência, dez mil pessoas cantaram em coro o refrão de Sociedade Alternativa (composição em parceria com o escritor Paulo Coelho) e Raul paga uma espécie de papiro, onde lê um discurso libertário baseado no Livro da Lei, do ocultista inglês Aleister Crowley. A cena é uma das mais icônicas da história do festival.



Público na porta do Estádio General Severiano - Foto: Reprodução/ Acervo Histórico


“Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei (…) Não existe Deus senão o próprio homem /“Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei (…) Não existe Deus senão o próprio homem / todo homem tem direito de viver como quiser / De trabalhar como quiser e quando quiser / (…) O homem tem direito de pensar / de pensar o que quiser/ De dizer o que quiser”, declama. E conclui: “Viva o novo Aeon! De cantor o Brasil já tá cheio!”, cantou Raulzito. “Todo homem tem direito de viver como quiser / De trabalhar como quiser e quando quiser / (…) O homem tem direito de pensar / de pensar o que quiser/ De dizer o que quiser”, brada. E conclui: “Viva o novo Aeon! De cantor o Brasil já tá cheio!”.


Claro que um evento desse porte não passaria despercebido pelos censores do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). “A maioria dos jovens faz uso de cigarros que, pelo modo com o qual os manipulavam, dava a nítida impressão de tratar-se de maconha”. Outro trecho: “Jovens de ambos os sexos apresentavam sinais de se encontrarem sob dependência psíquica; uns dançavam e contorciam-se no chão: olhos esgazeados, avermelhados, balbuciando frases desconexas”.


Passados 40 anos, o festival faz parte da história da contracultura brasileira. Quem viu o discurso de Raul, o show de Rita, a apresentação de Erasmo jamais se esquecerá. Mesmo durante os anos de chumbo da ditadura, com arapongas dos milicos por todos os lados, a mensagem foi plantada da melhor maneira possível. Viva a contracultura, viva o rock, viva a música, viva a arte.


Documentário sobre a primeira edição do Hollywood Rock exibido no Canal Brasil - Foto: Reprodução/ Youtube

Logo do Jornal Metamorfose
bottom of page